2005
LS, masculino, 52 anos, professor, apresentou insuficiência cardíaca. A solução era a substituição da valva aórtica por uma prótese.
Sob cuidados do Dr. JN, o paciente percorreu alguns pedágios bioéticos da relação Medicina-médico-paciente-instituição de saúde-sistema de saúde.
A sigla BBL refere-se à personificação da Bioética.
A sigla BP refere-se à bioprótese, por deferência da prosopopeia.
Primeiro pedágio bioético- ambulatório
Dr. PN -LS, você aceita, então, viver com uma prótese dentro do seu coração?
LS – Doutor, a vida perdeu o sentido. Desejo me recuperar o mais breve possível.
Dr. PN -Preciso do seu consentimento.
LS- Como faço?
Dr. JN – É dizer que aceita, mas somente se você se sente esclarecido e livre para decidir.
LS -Esclarecido sem dúvida, doutor, pois compreendi as explicações que o senhor me deu.
Dr. PN -E livre também?
LS -Livre certamente, eu não sinto nenhuma imposição externa.
Dr. PN -E interna?
LS -Doutor, sinceramente, se só dependesse da minha vontade, ficaria tomando comprimidos e até tomando umas injeções. Eles como que tiraram com a mão o meu desconforto.
Dr. PN -Eu compreendo. Os medicamentos lhe devolveram conforto, mas não posso garantir que isto dure muito tempo mais.
BBL LS estava sentindo o agora. O Dr. PN pressentia o amanhã, ciente dos limites do efeito farmacológico naquela circunstância clínica. Ele desejava privilegiar o bom prognóstico do implante de uma prótese valvular. Mas LS precisava aceitar que a prótese significaria liberdade para viver ao seu modo.
LS -Estou com medo da operação, doutor.
Dr. PN – Reconheça que o medo faz parte. Ajudará a prosseguir mesmo com ele.
BBL Não aceitar o conselho médico não significaria falta de confiança de LS no Dr. PN. LS estava se sentindo violentado pela doença e pela agressão cirúrgica em perspectiva. A resposta esperada era mais para si próprio do que para o Dr. PN. LS estava refém da sua valvopatia, o resgate era a prótese, havia um custo para o benefício. E teria de pagar em sofrimento.
A dupla adjetivação do consentimento significa esclarecido como interface com beneficência/maleficência e livre como atestado de inexistência de coerção por parte do médico. Evidentemente, o paciente não está exatamente livre das suas vivências, temores e fantasias.
LS não estava privado da sua liberdade civil – podia fazer o que desejasse dentro dos limites da repercussão clínica da doença valvar. A sua dignidade não estava em perigo – ele podia lutar pelos seus pontos de vista. Poderia vocalizar um não à proposta médica, mas como dispensar-se do compromisso com a própria vida, ignorar os apelos do tal do instinto de sobrevivência? LS decidiu-se pelo sim, porém, não conseguiu articular a fala para pronunciá-lo.
A ambivalência do paciente perante uma orientação médica é um dos pontos de reflexão sobre a dualidade Autonomia-Paternalismo. LS podia exercer sua autonomia, ele não sentia nenhuma atitude autoritária por parte do Dr. JN. Não havia abuso por assimetria nem de poder e nem de informação. Se na vida é verdade que o coração não sente o que os olhos não vêem, na beira do leito é também verdade que o coração do paciente pode não sentir o que os olhos do médico anteveem.
Muitas incompreensões de médicos sobre atitudes de pacientes são causadas por divergências entre a idealização profissional de encontrar, combater e antever, não importa qual seja o calibre das armas necessárias, e o desejo humano pelo alívio com a maior leveza possível. Os medicamentos representavam carga leve para LS e a operação arma de grosso calibre.
O Dr. PN era experiente bastante para saber que não havia razão para censurar a indecisão de LS. Para o Dr. LN havia a clareza da rotina, para LS, a escuridão de uma primeira vez.
O Dr. PN aguardou o desenrolar do conflito entre lógica e emoção por parte de LS. Não conseguindo expressar a sua decisão, o paciente devolveu para o médico a palavra final. Fez com a expectativa que haveria qual um eco da sua voz íntima na pessoa do doutor. Foi mais uma vez em que o Dr. PN se imaginou um boneco de ventríloquo. Ele não tinha nenhuma dúvida que a”terceirização” do consentimento correspondia à atávica tendência de se buscar proteção num “pai” em momentos cruéis.
LS – Doutor, o que o senhor decidir, está bom para mim.
Dr. PN -Entendi que você me deu a autorização para as providências de cirurgia.
LS – É isso doutor, seguirei as suas orientações.
BBL Se para LS, sentindo-se pequeno e frágil, o consentimento estava sendo algo relativo porque não se livrara de pensamentos ambíguos, para o Dr. PN soou como absoluto. A flecha tinha sido disparada, a tensão do arco se aliviara.
LS havia tirado dos próprios ombros a responsabilidade da decisão. A situação não admitia flexibilizações no intuito de harmonizar a recomendação médica com dificuldades emocionais de um paciente bem esclarecido. Era tudo ou nada.
Caso LS se mantivesse refratário ao consentimento para o tratamento cirúrgico, o Dr. JN, como já fizera em outras ocasiões, iria sugerir a alta a pedido.
O quanto o Dr. PN, na figura do personal-doctor de LS, sentido como honesto nos esclarecimentos e eficiente para devolver a boa qualidade de vida, poderia constituir fator de predição da verbalização de um sim por LS? A probabilidade é significativa, com certeza, mas, sabe-se por outro lado, que muitos casos precisam de um estímulo adicional para a tomada de uma decisão livre. É o caso da segunda opinião que costuma ser emitida por médico a quem o paciente consulta pela primeira- e única vez-, condição oposta, pois, em relação ao médico da primeira opinião, a quem sempre seguiu as orientações. Uma coisa é clínica, outra coisa é cirurgia…
LS -Na sala de espera, doutor, outro dia, eu ouvi falar que há dois tipos de prótese para colocar no lugar da válvula do coração, uma de material natural que rasga e outra de um metal que dura a vida toda.
Dr. PN -É verdade, faltou comentar sobre isso. Para o seu caso, eu recomendo a prótese que chamamos de biológica e lhe justifico: porque no seu dia-a-dia a outra prótese, a metálica, exigirá tomar um medicamento chamado de anticoagulante e você já teve dois episódios seguidos e recentes de hemorragia pela úlcera duodenal. Ele poderia fazer você sangrar novamente.
LS -Tive mesmo doutor. Eu fiquei apavorado com aquela sangueira toda. Nunca mais tomei uma gota sequer de cerveja e de cachaça. Mas, doutor, esta prótese que o senhor está dizendo, um dia rasga, não é?
BBL Esta forma de comunicação do Dr. PN não foi do tipo que pressupõe opções de escolha para LS. O Dr. PN presumiu que a sua opinião sobre vantagens e desvantagens significava cuidados competentes, segurança para o paciente e que isto bastaria. Não se descarta que tenha sido pelo inconsciente desejo do Dr. PN de não ter que se envolver em negociações para vencer obstáculos ao método que a sua experiência indicava como o mais adequado à circunstância.
Ocorre que o problema de LS estava na dificuldade de adesão à ideia de uma operação. Acrescer a perspectiva de reoperação após alguns anos complicava ainda mais. LS poderia preferir a opção com menor perspectiva de repetir a emoção daquele momento, uma prótese metálica “pra sempre”. LS entenderia menos assustador conviver com o risco do uso diário do anticoagulante, cumprir todas as recomendações para nem gastrite ter. Por que não?…
Ao invés do monólogo do Dr. PN, aparentemente não adaptado a uma visão global das preferências de LS, o seguinte e hipotético diálogo poderia ter acontecido, talvez com maior apoio dos defensores do Princípio da Autonomia:
Dr. PN -LS, há dois tipos de prótese para o seu caso; uma chama-se bioprótese ou prótese biológica e tem chance de precisar ser substituída após alguns anos de uso e a outra é a metálica, que tem grande probabilidade de durar para sempre, só que ela exige que você tome um medicamento todos os dias. Ele é um anticoagulante e pode colocá-lo sob risco de sangrar novamente pela úlcera duodenal. Qual delas você prefere?
LS – Eu prefiro arriscar, doutor, eu vou conviver melhor com a incerteza sobre o sangramento do que com a certeza da reoperação.
Nesta conjectura de diálogo de acatamento à Autonomia, a eficiente guardiã contra abusos da autoridade médica, o foco do holofote deslocar-se-ia de LS para o Dr. PN. Agora quem necessitava dar ou não dar o consentimento à aplicação, fazer o exercício da tolerância, era o Dr. PN, uma vez esclarecido sobre a opinião de LS quanto ao que desejava. O Dr. PN estaria esclarecido sobre Ética e livre de rigidez terapêutica?
O Princípio fundamental VII do Código de Ética Médica vigente dispõe que o médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente. Por ele, o Dr. PN estaria eticamente apoiado para aceitar ou recusar a eventual resposta de LS a favor da prótese metálica, guiado pelo que entendia como boas práticas da beira do leito perante valvopatia.
Seria momento oportuno para o exercício do Paternalismo fraco. Ante uma eventual discordância de LS, o Dr. JN poderia prosseguir com as explicações, direcioná-las para o convencimento, cuidando para ficar aquém do sagrado limite da coerção.
O Dr. PN neste quesito da escolha do tipo de prótese julgou bastante o consentimento de LS no plano mais geral, aquele do sim ou do não ao ato operatório. O Dr. PN não se arriscou a fazer escalas em concessões sobre fatores mais técnicos. O tipo de prótese entrou na mesma consideração do número do fio para a suturar, decisão do cirurgião.
Neste particular, a heteronomia das diretrizes versus a autonomia do paciente para as “desrespeitar”, é dilema da beira do leito dos mais difíceis de serem enfrentados. A transfusão de sangue em paciente Testemunha de Jeová ilustra esta modalidade de situação embaraçosa.
Segundo pedágio bioético- ambulatório
Dr. PN -LS, você tem preferência por algum cirurgião?
LS -Não é o senhor que vai me operar?
Dr. PN -Eu sou o clínico, eu preciso chamar um cirurgião.
LS -Como já disse doutor, o que o senhor fizer estará bem feito.
BBP O Dr. PN propôs a operação em nome de uma equipe. O anestésico, o bisturi e os curativos não estariam em suas mãos. O nome do cirurgião pode fazer diferença em termos de consentimento. O paciente poderá desejar resguardar-se em certas qualificações profissionais.
Ao receber carta branca para a escolha da equipe cirúrgica, o Dr. PN tornou-se também avalista dos vários procedimentos, muito mais do que um simples receptor do consentimento livre e esclarecido. Acresce que em hospitais de ensino há a condição do treinamento sob supervisão.
O Dr. PN, pois tornou-se o avalista do consentimento de LS em nome da equipe multiprofissional. Ele deve reconhecer a responsabilidade como médico-assistente e a co-responsabilidade em relação à equipe. Atenderá ao art. 3º do Código de Ética Médica vigente que veda ao médico deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou ou do qual participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente.
LS foi encaminhado para o Centro Cirúrgico.
∇∇∇ Prossegue no capítulo II∇∇∇