Independentemente do tipo de intervenção, é inaceitável que o sistema de saúde se desvie dos princípios fundamentais de acolhimento humano e respeito às mulheres em situação de gestação ou abortamento. O cuidado social pela mulher grávida, refletido em prioridades garantidas por lei e normas educacionais, deve ser estendido de maneira equitativa a todas as situações, especialmente quando a gravidez envolve circunstâncias traumáticas, como ser vítima de estupro, enfrentar a perda de um feto anencéfalo, ou lidar com o risco de morte devido à sobrecarga hemodinâmica.
Da mesma forma, os serviços especializados não devem restringir o trabalho dos médicos que, agindo dentro da legalidade, realizam abortos permitidos por lei no Brasil. O útero, sob os impactos éticos, morais e legais, é um tema que exige a participação ativa da Bioética, que proporciona uma estrutura para assegurar que as decisões e práticas de saúde respeitem a dignidade e os direitos das mulheres.
Dúvidas, desafios e conflitos acontecem frequentemente em situações passíveis de apreciação multidimensional como no caso de abortamento legal. Vaivéns requerem acompanhamentos qualificados, idealmente transdisciplinares, e visam a uma climatização do ambiente com a sabedoria de muita calma e firmeza nesta hora.
A Bioética da Beira do leito entende que são inadmissíveis comportamentos profissionais na área da Saúde contaminados por estigmatizações ou discriminações. Afinal, trata-se de seres humanos cuidando de outros seres
humanos, incluindo aqueles ainda não nascidos, e isso ocorre na medicina há 26 séculos, desde que Hipócrates transferiu a responsabilidade dos deuses gregos para os próprios médicos, trazendo as orientações das alturas para os pés no chão, voltadas para uma visão mais objetiva e prática.
A heteronomia dominou por séculos – O enfermo deve implícita obediência às prescrições medicas, as quais não lhe é permitido alterar de maneira alguma; igual regra é aplicada ao regime dietético, ao exercício e qualquer outras indicações higiênicas que o facultativo creia necessário impor-lhe (Código de moral médica 1929), mas, atualmente, a autonomia ganhou status prioritário – É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte (Código de Ética médica vigente).
Discorrer, com evidências, os aspectos humanos relacionados à presença de um concepto no útero se depara com o fato de que ninguém se lembra de ter estado no útero por meses – acredita-se que o desenvolvimento da memória de longo prazo só comece por volta dos três anos de idade. Essa ausência da lembrança contribui para a falta de consenso sobre as interfaces entre embrião, feto e o conceito de vida. Embora seja complexo, não é inadmissível fazer analogias entre o entendimento atual de morte encefálica e as discussões sobre nascimento encefálico. A visão sobre a anencefalia reforça a ideia de natimorto ou justifica a antecipação do parto por motivos terapêuticos.
Há cerca de 100 anos, o teólogo Paul Max Fritz Jahr (1895-1965) pregou: Respeita todo ser vivo essencialmente como um fim em si mesmo e trata-o, se possível, como tal. Publicou como um Imperativo Bioético e assim, lançou as bases para a criação da Bioética. A abrangência e a profundidade do se possível são instigantes.
É auspicioso que, em 2024, um ano marcado por várias discussões sobre a violência de gênero, especialmente contra mulheres em fase reprodutiva e também contra o meio ambiente – violências estas que afetam negativamente as matrizes humanas e naturais e comprometem a continuidade das gerações futuras – o tema do Dia Mundial da Bioética (19 de outubro) seja Não à discriminação e à estigmatização. Útero e meio ambiente de mãos dadas, sob o interesse da Bioética!