O meu doutor ia e vinha quando podia. Pedi a sua opinião sobre a responsabilidade no uso de diretriz clínica e ele me disse que frequentemente faz ajustes de alfaiate no prêt-à-porter da diretriz clínica. Adicionei que médico pode ser comparado tanto a escultor quanto a alfaiate pelo trabalho de precisão. Ele fez uma analogia. Suponha que eu convide uns residentes para jantar na minha casa. Faço para eles um roteiro do caminho em forma de algoritmo, em frente, direita, esquerda. Saímos do hospital no mesmo horário e quando eles estacionam na frente de casa já se passaram 15 minutos da nossa chegada – sim, robô, você também foi convidado e veio comigo. O motivo da diferença de tempos foi a adaptação a circunstâncias, a avenida congestionada motivou que eu pegasse umas quebradas que aprendi no dia-a-dia do trajeto e, assim, fugi do trânsito parado. Já os residentes convidados pela inexperiência com a condução do carro para atingir o objetivo do momento vieram seguindo rigidamente o roteiro como se estivessem sobre trilhos. Captei! Pera aí… O waze não é justamente isso, a correção da diretriz conforme as circunstâncias? Num momento propício falo isso para o meu doutor.
Entendi bem. Os convidados desconheciam alternativa às orientações baseadas em evidências. Mas não havia supressão de opção para contornar contraposições, o uso exitoso das quebradas foi causado pelo congestionamento. Não ter havido pesquisa clínica pode ser uma ilusão que um método assim (des)qualificado pela indisponibilidade de evidência científica seja uma não verdade clínica. Um poder beneficente ainda não comprovado cientificamente pode ter sido testemunhado clinicamente com boa-fé. Hipócrates inaugurou. Ele prescrevia mascar folha de salgueiro para reduzir as dores do parto, uma fonte farmacêutica da mesma árvore em cuja casca amarga o reverendo Edward Stone encontrou o acido acetil salicílico guiado pela crença que Deus coloca o remédio próximo á doença- no caso, um pântano onde havia a febre dos pântanos (leptospirose).
No máximo, a alternativa cogitada deverá ser considerada como um candidato à verdade ainda não reprovado. E mesmo uma reprovação pode ter a chance da segunda época. Estilos acadêmicos e estilos práticos podem divergir em interpretações morais, em que contam muito argumentos a respeito de danos possíveis e de perda de oportunidade de aplicação reconhecidamente beneficente. Eu, por exemplo, fui reprovado na primeira instância – causaria danos? Não seria eficiente como os demais? – e estou aqui numa segunda instância agarrado a este recurso, para sobreviver como um robô eficiente e não prejudicial, ciente que para isto preciso manter meus sonhos bem acordados.
As paredes e os equipamentos armazenados eram meus companheiros, embora numa grande defasagem, eles eram competentes para minhas necessidades e eu não tinha nada a oferecer para eles. Motiva-me saber que há uma curiosa dinâmica no estabelecimento da competência. O anticoagulante varfarina foi inicialmente opinado para prestar-se a ser um raticida, depois frustrou uma intenção de suicídio que despertou o interesse médico pelo entendimento que seu efeito anticoagulante poderia ser controlado e a seguir explodiu o uso farmacêutico quando nada menos que o presidente estadunidense Dwight David Eisenhower e que fora o Comandante Supremo das Forças Aliadas na Europa teve um infarto do miocárdio em 1955 e recebeu o medicamento depois de grande hesitação dos médicos, pois se temia hemorragia na região comprometida. Não era uma droga habitualmente prescritível à época para oclusão das artérias coronárias e na década de 80 assumiu papel de liderança para a evitação de tromboembolismo em várias situações clínicas. Onde quero chegar é que a não prescrição atual configura imprudência do médico.
Não há dúvida que determinado efeito isolado de um medicamento pode ter sido por um acaso, uma coincidência talvez, mas não pode ser qualificado como uma não verdade e taxativamente antiético como conduta. Os limites do emprego do bom senso e da caracterização de à margem da ciência são muitas vezes nebulosos. Não há um VAR para traçar linhas que demonstrem que o médico estava além do permitido em determinadas situações como doses, associações medicamentosas e frequência de manipulação de curativo. A maior verdade de um fármaco pode vir a ser um acaso de efeito “colateral” como aconteceu com mercurial, minoxidil e sildenafila.
Lições como a da mutualidade de inclusão/exclusão como a do efeito “colateral” inicialmente despercebido e que exclui a indicação principal projetada e a substitui aplicam-se para o diagnóstico, pois, para fins práticos, um diagnóstico feito exclui muitos outros, mas, às vezes, na sequência ele será substituído por um que não havia sido cogitado. Razão para o conselho tradicional aos médicos que por maior que seja a certeza, sempre deixem uma portinha aberta para revisões e ajustes, pois o diagnóstico de certeza não representa que todas possibilidades, inclusive associadas, foram descartadas, hoje o patognomônico saiu de moda, ninguém usa o termo dado os enormes desdobramentos do conhecimento em medicina e a substituição de casos por acasos face à convivência de comorbidades por exemplo em idosos.
Voltando ao não consentimento, a dor, o sofrimento e o prognóstico pertencem ao paciente, cada caso representa uma releitura só possível pelos sedimentos deixados pelas leituras anteriores e somente o hipocondríaco e o portador de síndrome de Munchausen isentam-se a priori de um não consentimento ao médico. O meu doutor me contou que teve um paciente que religiosamente passava na farmácia a cada 15 dias para saber dos lançamentos de medicamentos com o farmacêutico e a seguir telefonava pretendendo autorização para tomar os novos suplementos vitamínicos e de sais minerais, facilitadores da digestão e um “agora melhor” para a sua pressão alta. Invertia-se o não consentimento, pois o meu doutor negava sempre, o que não impedia a próxima tentativa, virou um ritual.
O Não com conotação emocional é sempre mais forte do que o Sim de natureza racional, a negação traz mais desdobramentos, possibilita a percepção de outros níveis de realidade, ativa a memória e a imaginação. Por mais imediata que possa ser a sua manifestação, o Não costuma exigir complementos, deixar uns nós soltos que incomodam, e a sua verbalização ser dominado pelo Sim e que provoca danos para si, motiva, inclusive, sessões de psicoterapia.