Não se lê uma atualização de diretriz clínica recém-publicada por mero prazer pessoal como se faz com um romance, mas como um dever de aperfeiçoamento profissional e permanente trabalho de Sísifo. Cada caso materializa-se como releituras científicas equivalentes do texto com influências mais ou menos superponíveis ao contexto clínico.
O médico não tem o controle sobre as renovações do tecnocientífico validado das diretrizes clínicas, ele depende das iniciativas das sociedades de especialidade. Cada renascimento de uma diretriz clínica é reforço da ligação da excelência da medicina na beira do leito à medicina baseada em evidências. A credibilidade articulada ao aval dado pelas sociedades de especialidade exerce certo controle sobre o que, à época, foi um rumoroso alerta de David Sackett, um dos criadores da medicina baseada em evidências, que manifestou sua frustração pelos efeitos danosos do que entendia exageros de auto intitulação de competentes para lidar com evidências.
Uma enfermeira chegou próximo a mim para falar mais à vontade no celular, num primeiro momento fiquei curioso sobre a conversa, mas logo percebi que era pessoal e assim desinteressei-me obedecendo a valores de robô. Reconcentrei-me e veio a minha mente de silício que o conceito de melhor interesse do paciente baseado na beneficência sustentada pela literatura dominante é primordial, mas, ao mesmo tempo, exclui outras potencialidades, pensar fora da caixa do estado da arte, num espaço que respeita o já cientificamente excluído, expande, inclusive o tempo de atenção ao caso.
Evidência de beneficência não é vidência de benefício e esta distinção de apenas uma letra é grande suficiente para endossar certas apreciações de validade de conjecturas, pressupostas com boa-fé, pés no chão e mãos no coração, com chance de redundar no sem-preço de o paciente se ver livre do sintoma, especialmente se por atuação na etiopatogenia, este elevadíssimo momento da verdade da medicina para o ser humano. Na arte de aplicar tecnociência, considerando o que é bem e o que pode ser bom, o escultor-médico com autenticidade de intenções sobre o bom para a clínica do caso lapida a pedra bruta do bem científico.
Neste pouco tempo de observação crítica já posso resumir que meu aprendizado de máquina incorporou que a experiência de fato vivenciada pelo médico na beira do leito é expansiva, amplia-se caso após caso, numa continuada prestação de serviço com ou sem agendamentos formais, e não infrequente, desafia o comando das diretrizes clínicas que é de visão universal e precisa ser ajustada ao paciente e a disponibilidades locais.
Não tinha de fábrica a noção que pacientes não constituem um bloco compacto, eles formam um conjunto de variantes. Por isso, as divergências afetam o interior do médico como fermento profissional, fazem crescer diante dos casos, amadurecer nas tomadas de decisão, fortalecem o compromisso responsável. Dúvidas bem admitidas trazem ansiedade positiva no shakesperiano dilema: Ser ou não ser, eis a questão! Não faltam questões de vida e de morte na beira do leito que requerem seleção de entalhes – e ferramentas – pelo escultor-médico.