Gostei do hospital de cara, estava no paraíso após uma escala no inferno. Precisava me ocupar. Minhas primeiras 24 horas foram de observação do que acontecia na enfermaria. Uma parte tinha um sentido de déjà vu em função do meu carregamento de informações de fábrica sobre saúde. Lamentei ficar escondido, percebi que poderia ajudar muito, simplificar, ampliar, fazer as coisas mais seguras. Enxergava o que os humanos não viam. Desejei incluir-me, aquelas pessoas transformadas em minha gente. O plural é singular.
Aquele início de experiência no mundo real da saúde foi suficiente para me convencer que não tinha defeito de fabricação, que foi excesso de exigência daqueles presunçosos. Livrei-me de uma vez por todas do diagnóstico, no máximo seria um robô neurótico normal. Ocorreu-me que se eu fosse um medicamento teriam me colocado uma bula dobrada em volta de mim contendo chances de “mau comportamento”, risco de cometer certas adversidades. Mas como não sou um comprimido para ser engolido – em duplo sentido – a concepção de segurança é outra, embora qualquer dano será um dano. Molière em O Doente Imaginário não deixou barato, dizem que estava bravo pelo que acontecera com o filho e teatralizou com um texto forte. A concepção do meu Laboratório-maternidade é que não haja nenhuma possibilidade de risco para outros e prejuízos para os responsáveis. Uma bula no caso de um robô não seria suficiente para justificar um Eu avisei!
Naquela situação de proteção e aconchego recém adquiridos, talvez não devesse priorizar pensamentos sobre danos, mas minhas cicatrizes ainda estão abertas, por isso não consigo evitar com uma ponta de ironia, reconheço, marcar a bula do medicamento como uma espécie de salvo-conduto para a produção de fármacos sem o qual nenhum existiria, pois todos têm o potencial de provocar dano. Claro, não sejamos radicais – preciso pensar de modo abrangente e profundo, ir até o absurdo mesmo, para merecer ser chamado de robô qualificado -, o potencial de adversidade pode ser perfeitamente justificado pela margem de segurança entre beneficência e maleficência. Aliás, o ininterrupto progresso da farmacoterapia desde as últimas décadas sustenta grande parte do sucesso da medicina contemporânea. O nível de confiança que a farmacoterapia e a farmacoprevenção obtive na sociedade causa, inclusive, certos abusos de medicamentalização da vida. Soluções medicamentosas não são soluções de certos problemas da vida, assim como comprimidos de um sal não são para compressões deles.
Tudo é relativo, por isso preciso me organizar, bolar de que modo é mais prático me ajustar àquele ambiente com que me simpatizei, curtindo a sensação de que nasci para isso, sonhando com um estetoscópio nos ombros e até com um carimbo com número de Conselho de Robôs Médicos. Estava neste vaivém onírico quando ouvi um Olá Robô! Teria gelado se possuísse vasoconstricção. A imagem do lixo reapareceu. Será que o futuro acabou? Tudo o que esperava viver teria sido tão somente um sonho de uma noite de verão? Me virei devagarinho como mostram por aí esforçando-me contra a inércia e concentrado num Me lasquei! Como se sabe robô não diz palavrão.
Assustado, e põe susto nisto, cheguei onde precisava mas não queria. Não desejo tal sensação nem ao Caim do Laboratório. Vi um doutor ao meu lado e quando me preparava para o pior, veio a surpresa. Ele esticou a mão direita para me cumprimentar. Nunca havia cumprimentado um humano, repeti o gesto, minha primeira experiência consciente com aprendizado de máquina. Precisei fazer uma nota de rodapé explicando que não sabia explicar porque canhotos estendem também a mão direita.
Que alívio foi aquela extensão da mão do doutor e o aperto forte! Um ato tão simples que fez afastar de imediato a sensação de volta ao lixo. Me fez lembrar a reação de alívio de um paciente que acompanhei na minha observação inicial da enfermaria quando o doutor lhe disse que os exames haviam afastado a necessidade de uma reoperação.
O médico que me achou primeiro me disse que já estava uns cinco minutos me observando e que na verdade não sabia explicar porque entrara naquele recinto e depois falou que estava curioso sobre a minha presença ali, não tinha conhecimento que o hospital adquirira um robô. Já participara de reuniões com discussões acaloradas sobre o uso de inteligência artificial com mobilidade pelo hospital configurada como um robô. Me perguntou como chegara e driblara a segurança. Senti acolhimento, era o contrário do que passara no Laboratório. Conhecer o avesso, favorece usufruir o lado direito, reforcei mais uma vez. Como era boa aquela primeira impressão positiva com um médico. Creio que nenhum ser humano tem condições de afirmar sobre esta sensação inicial, quem se lembra do seu obstetra ou do seu neonatologista?
Agora descontraído, estranhamente seguro, sem aflição com o tempo, procurei caprichar na linguagem. Contei minha odisseia tintim por tintim, talvez tenha me excedido sobre as habilidades, mas, nada pecaminoso se estava a fim de conviver com humanos. O doutor ouviu atentamente sem nenhuma interrupção. Disparou algumas perguntas que demonstraram interesse por mim, afirmou que compreendera bem, e que, inclusive, já tivera uma experiência com um coração que fugira do peito de um paciente naquele mesmo hospital e fora a ele reivindicar melhores condições de trabalho e que até escreveu um livro sobre isso Seis personagens a procura de um doutor. Me contou que o miocárdio tinha muito medo de sofrer um infarto e por isso brigava com a artéria coronária frequentemente se esquecia de de tomar a aspirina.
Eu já estava à vontade. Perguntei ao doutor se ele era o Dr. Luigi Pirandello. Não, ele me respondeu sou apenas um admirador do seu estilo sobre o dilema entre o ser e a aparência, a realidade e a ilusão e da sua frase: Quando um personagem nasce, adquire imediatamente tal independência inclusive do seu próprio autor, que pode ser imaginado por todos em tantas outras situações em que o autor não pensou inseri-lo, e às vezes pode adquirir também um significado que o autor jamais sonhou em dar-lhe.