A Bioética da Beira do leito compartilha a noção que tomadas de decisão terapêutica devem considerar a tríade- recuperar o órgão doente- não prejudicar/preservar órgãos saudáveis- não agravar comorbidades. Estes componentes costumam estar envolvidos em objetivos primários e secundários de pesquisas clínicas para satisfazer tanto uma premissa do conhecimento segundo a qual somente a busca da verdade faz encontrá-la, quanto uma premissa moral segundo a qual a busca é um dever.
A Medicina Baseada em Evidências (MBE) tomou proporção global nos anos 90 do século passado pelo pioneirismo do canadense David Lawrence Sackett, nascido em 1934. Sackett destacou que conclusões de pesquisas clínicas correspondiam ao encontro da dimensão do efeito assistencial para as circunstâncias estudadas e da probabilidade de certeza- não de veracidade- da mesma, desta forma maximizando as chances de satisfação da tríade acima.
Dar foco às interpretações dos dados dos estudos com alta sustentação estatística como sendo evidências de utilidade e de eficácia validadas, reprodutíveis e claras, carregando-as de um imperativo moral de uso assistencial, dá uma dimensão cientificista, uma visão de responsabilidades com o conhecimento e com a razão.
Neste contexto, a MBE ganhou adeptos fervorosos e opositores ferrenhos. De um lado, o entendimento da obtenção de um sólido alicerce da Medicina e de outro, o descrédito sobre o quanto ela seria bastante para a resolução das necessidades da pessoa doente e para os propósitos da pessoa médico, ambos seres vulneráveis, quer pela dependência a outros, quer por aspectos pessoais.
Exageros aconteceram, usos indevidos também. Um efeito de atrofia do raciocínio clínico pela MBE tornou-se conjectura preocupante em muitos ambientes acadêmicos. A idéia da falta da face humana que estampa valores e preferências do paciente provocou inquietações. A comparação com a prática de receitas culinárias (“cookbook”) foi inevitável.
O reducionismo da MBE à aplicação de diretrizes que trouxe um contexto cada vez mais codificado às tomadas de decisão na beira do leito, “igualando” pessoas que não são afins entre si e que reagem com tensões diferentes ante situações estressantes como a doença. Indagou-se se o aspecto biológico que foca na nosologia, parte apenas do modelo biopsicossocial de atenção à Saúde, seria adequadamente complementado por convergências no paciente como um todo, sua história de vida e suas expectativas.
Em outras palavras, o conhecimento científico recomendável numa “forma bruta” não poderia deixar de ser processado pela arte do médico sensível à completitude biopsicossocial de cada individualidade.
O interessante é que esta polêmica não fazia parte do imaginário de Sackett. Ele definira a MBE como a integração das melhores evidências de pesquisas com a expertise clínica do médico e os valores do paciente. Houve, portanto, ilhas de desvirtuamento do pensamento original. Sackett estava convicto que a MBE era vantajosa para o binômio médico-paciente por que: a) proporcionava um rótulo convincente do que funciona ou não funciona, que até então inexistia; b) as informações eram de fácil acesso para médico e paciente; c) permitia satisfazer expectativas dos pacientes com base nas mais eficazes soluções testadas, melhor se derivadas de estudos randomizados. Um dos propósitos era testar a legitimidade de condutas assistenciais “tradicionais” e não contrapor-se a elas porque não haviam sido ainda avaliadas. Sackett, portanto, não desejava se desdizer o pensamento centenário do canadense William Bart Osler (1849-1919): “… o bom médico trata a doença; o ótimo médico trata o paciente que tem a doença…”. A chamada Medicina centrada no paciente não poderia perder este pleonasmo, não se pretende uma chamada Medicina baseada na doença.
Considerando que a ética não pode se restringir a evidências científicas, considerando a Bioética junção da Ética Médica e da Filosofia Moral numa plataforma deontológica- conhecimento do dever profissional- e ontológica- conhecimento do ser humano-, apresentamos algumas observações de cunho crítico referentes a BEM na beira do leito.
É notório o quanto estudos randomizados pretendem homogeneidades e exigem exclusões por idades, comorbidades e circunstâncias clínicas, a favor do poder estatístico de resultados. A translação das conclusões para a beira do leito deve, pois deve ser sustentada pelo conhecimento aprofundado sobre as bases da transformação dos dados em evidência.
O dia-a-dia da beira do leito precisa lidar com as recomendações numa heterogeneidade de situações, trazendo, assim, a influência da “inclusão das exclusões” sobre sucessos e insucessos. Um simples copy-paste de quadros didáticos é passível de deslizes éticos. A expansão de adversidades aos benefícios observados da chamada fase de mercado acontece pela força do mundo real da beira do leito, plural na combinação de diagnósticos.
O desenvolvimento das diretrizes convergiu para uma disposição associativa. É fato que sociedades de especialidades reúnem médicos experientes em comités, onde nem sempre há consenso de entendimento do resultante da varredura da literatura. Votações acontecem, pretensamente isentas de impactos por conflitos de interesse, mas nunca neutras. Uma diferença de poucos votos pode causar grandes diferenças de aplicação na beira do leito.
A vivência à beira do leito ensina que há situações onde o médico canaliza com lucidez a sua atenção para a gravidade clínica desfocada do psicossocial, como acontece na emergência, onde a proximidade da morte precisa ser rapidamente evitada com o poder resolutivo das mais respeitadas evidências tecnicocientíficas.
A vivência à beira do leito ensina, por outro lado, que há situações onde o médico não pode deixar de hieraquizar o psicossocial no processo de tomada de decisão. Influências culturais, religiosas e financeiras podem provocar “radicais” ajustes na aplicação das recomendações para a doença.
A Bioética da Beira do leito entende que ajustes de recomendações de diretrizes motivados pela segurança e/ou pela autonomia significam zelo e prudência na beira do leito.