Há cerca de meio século ouço reiteradamente dos colegas que a medicina está ficando cada dia mais difícil de ser exercida. Concordo e também verbalizo na medida das inconveniências. Entretanto, a justificativa do queixume é alvissareira: a medicina está ficando é cada vez mais eficiente.
A dificuldade crescente corre por conta da complexidade. A pluralidade complexa multiplica entrelaçamentos entre potencialidades e realizações por mais disponibilidade de opções e não perdoa carências de prudência e/ou zelo a respeito da intenção do médico de não cometer erros, quer por ação ou por inação. Maior chance complexidade-dependente de inobservâncias de fato acontecerem é algo humano que aciona a consciência moral. A calibragem entre perceber-se em adequação ou inadequação profissional fica sujeita, caso a caso, a influências do modo como cada médico lida com a responsabilidade. Não somente como ele enxerga como também como reage a possibilidades de, como agente moral, ser louvado ou culpado por terceiros no seu desempenho de obrigações e tarefas. Insegurança relaciona-se à falta de confiança e direciona para necessidades de angariar subsídios confirmatórios que afastem perigos quer de natureza realista porque advinda do exterior, quer neurótica porque advinda do mundo interno e quer a ontológica que se articula com aspectos psíquicos de cada um.
Os deuses gregos proporcionavam a sensação de compreensão das necessidades exercendo um poder ausente no ser humano projetado num porto seguro como obtenção de qualidades, realização de desejos e alcance de aspirações impossíveis por si próprio.
A crença nos deuses deixava os gregos antigos seguros pela fé quanto aos efeitos benéficos das orientações advindas para a saúde. Quando Hipócrates (460 aC-370aC) assumiu a missão, nova formas de relacionamento foram dando fim ao infalível divino enquanto eclodia a ideia da potencialidade humana de gerar malefício impensável para aconselhamentos dos deuses. Não era uma questão de desacreditar no valor dos deuses, mas de considerar que o verdadeiro ateu é quem não acredita nas potencialidades do ser humano.
Recomendações para a saúde deixaram de se constituir em profecias emanadas de um habitat imaginado e inatingível num além e passaram a representar circunstâncias “pés no chão”, literalmente, fontes visíveis e associadas às limitações humanas. Surgiu um primitivo reconhecimento do valor das realidades do corpo e da mente humanos tanto quanto possam ser conhecidas e interpretadas como evidências que sustentem o acúmulo de experiência profissional.
Incertezas, riscos do mal, preocupações com o desconhecimento desenvolveram-se e tornaram imprescindíveis pensamentos/comportamentos de prudência na responsabilidade da seleção e aplicação de métodos cogitados para efeito na saúde. Os pacientes se confundiam como “voluntários de pesquisas”, as reações de seus organismos às doenças e aos remédios escreviam a medicina.
Decompor meio e resultado, entender como deviam funcionar as justificativas de meios para fins na saúde fizeram parte da implantação da sabedoria na medicina, a coleção de conhecimentos que se desenvolve há 26 séculos, ipso facto, período de tempo também aplicável para o médico como continuada prole do Pai da medicina.
Período de tempo pra lá de suficiente para firmar a tradição da inquietude com a preservação de uma qualificada identidade profissional de ser/estar/ficar médico ético, responsável, eficiente e respeitado, instigada pelo próprio interior e pela sociedade.
Ponto histórico de referência inaugural é o cuidado para não causar danos por insensatos objetivos de benefício à saúde. O hipocrático non nocere tornou-se emblemático compromisso com o resguardo humano na conexão médico-paciente. Constitui-se numa via de duas mãos, vai resguardar o outro, vem resguardar-se a si próprio. Defesa do paciente pelo médico, defesa do médico pela medicina validada é reciprocidade triangulada incorporada no cotidiano da atenção às necessidades de saúde.