É o esperado! O jovem profissional da saúde aspira desempenhar-se, desempenhar-se bem, desempenhar-se cada vez mais próximo da excelência. Assim ele imagina livremente enquanto que a realização efetiva está presa a um conjunto complexo de influências. Há as internas e há as externas que paulatinamente promovem inevitáveis reconfigurações individuais na arte de aplicar ciência a um ser humano no ecossistema da beira do leito. A aspiração mantém-se viva porque ele muda constantemente.
As influências internas dizem respeito ao conjunto de conhecimento, habilidade e atitude (em amplo sentido, consigo e com o outro) que configuram a competência profissional e as influências externas estão cada vez articuladas com os impactos das inovações tecnológicas e das atualidades de exigências sociais sobre as tradições da profissão.
Ao longo de uma carreira habitualmente multimodo, o profissional da saúde é compelido a entender que sempre o mesmo é uma opção altamente instável, que a repetição rotineira da forma com que integra os três componentes da competência tende a uma curta duração, que se não se transformar segundo o renovado estado da arte, fica sujeito ao descumprimento do Princípio fundamental V do Código de Ética Médica vigente: Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade, cai no niilismo da desatualização. É um verdadeiro exercício de arqueologia rever camada por camada as “atualidades” que incorporei desde a formatura há 54 anos.
Por isso, o diploma/direito a um número no Conselho profissional é tão somente um visto de entrada no ecossistema da beira do leito, renovável pelo desempenho. Predominam as bases concretas das atividades, os sucessivos alinhamentos aos momentos da tecnociência. Todavia, vale muito, perante um (a)caso da beira do leito, o profissional da saúde permitir-se fazer um “puxadinho” para um mundo abstrato. É justificável o exercício de supor-se isolado e independente qual um Robinson Crusoé a fim de dar algum (re)toque intuitivo (experiência-dependente) à conduta que, essencialmente, aplica baseado em evidências científicas. Corresponde à preservação de um grau de poder pessoal em meio ao poder da tecnociência validada e seus alinhamentos com a instituição de saúde e com o sistema de saúde. Não se trata de anarquia, insubordinação ao estado da arte, transgressão inconsequente, mas uma atenção no domínio da ética ao caráter humano da aplicação das ciências da saúde no contexto de possibilidades e realidades. Adequa-se à concepção que diretrizes clínicas não são algemas, mas sim bússolas.
A Bioética da Beira do leito entende que este tipo de comportamento nos limites da moralidade é beneficiário do desempenho profissional com crescente satisfação, vale dizer, promove favorecimento à autoestima, quiçá, possa se constituir em antiburnout. Ademais, ele contribui para o profissional da saúde sentir-se um empreendedor-transformador de braços dados com o paciente e não apenas um coletor-caçador de informações desde o paciente e desde a literatura especializada. Compreensões individualizadas dos (a)casos da beira do leito têm o potencial de combater excessos dogmáticos – cienticismos e tecnicismos -, favorecem a construção tijolo a tijolo da empatia e preservam o indispensável juízo clínico crítico intuído desde Hipócrates (460 aC-370aC).
A Bioética da Beira do leito adverte para os riscos da confusão entre prática – como aplicação da teoria- e prática – no sentido de facilitação-, pois traz a tendência a inadequações por tentativas de simplificação de complexidades. Para o usufruto ético/moral/legal do notável acúmulo de evidências científicas e tecnologias- fatores indubitáveis do maior controle/reversão contemporânea das doenças -, é essencial resguardar-se de uma sensação de tirania da prática vigente, o que tradicionalmente sustenta-se pela figura de um juízo de inconveniência prática na cogitação da aplicação de uma conveniência teórica de métodos científicos validados.
De fato, o potencial de utilidade e eficácia que é atestado por uma recomendação IA numa diretriz clínica – a prática caçadora-coletora da teoria-, carece da facilitação quando se identifica uma contraindicação clínica, apenas detectável pela atividade empreendedora-transformadora do profissional da saúde atento ao respeito à prudência- ética e virtude.
O jovem profissional da saúde vai aos poucos entendendo o mundo em que trabalha, percebendo o seu lugar e como deseja exercer o pertencimento a sua comunidade de interpretação, adaptar-se a ele e adaptá-lo a si. Reconhece necessidades e ajusta responsabilidades. Calibra hierarquias e dominações da tecnociência manejando possibilidades pessoais.
Dizem que logo, logo teremos uma dominante automação/cibernética da prática das ciências da saúde, que será beneficente para a qualidade/expectativa de vida humana, que, por sua vez, adquirirá uma expressão de ciborgue. Por mais que possa ser uma tendência irreversível, por mais que deva haver um preparo para este futuro, por enquanto, pressupostos da realidade vigente indicam que persiste a necessidade da correspondente atenção à condição humana tal qual atual, incluindo o profissional da saúde, indispensável para a preparação de qualquer caminhada transicional.
A Bioética da Beira do leito, ao se preocupar com as perspectivas das inovações (automação, inteligência artificial, sensores, impressão 3D, robotização) altamente transformadoras (disruptivas), procura valer-se da contribuição multiprofissional e transdisciplinar objetivando cooperar para o manejo dos desafios, dilemas e conflitos previstos para acontecer pela discrepância entre velocidade da inovação e capacidade de ajuste, ademais, variável para cada região, e suas inevitáveis ambiguidades de expressões de (des)contentamento.