A Bioética torna-se fórum para reflexões sobre o quanto oposições/indiferenças de natureza moral dadas pelo livre pensar acerca do transumanismo devem acionar freios, tirar o pé do acelerador das oportunidades de redefinições somáticas e cognitivas entendidas como de aperfeiçoamento do ser humano, à margem da “prudência” da influência genética e em ausência de um fio condutor de base antropológica pré-estabelecido com consenso científico.
Transitar pelo transumanismo com uma calibragem adequada dos filtros do juízo crítico (a ser ajustada) é uma demanda social para os militantes da Bioética, pois, é incógnita como dar-se-á a interface entre desejos motivadores e realidades adaptativas pelos seres humanos que ainda virão a nascer. Por exemplo, a possibilidade de exacerbação de desigualdades socioeconômicas por privilégios e de frustrações pessoais em face de uma espiral ascendente de qualificação tecnológica. Recorde-se que ao final da história, o monstro Frankenstein exige a construção de uma companheira com a promessa de deixar a humanidade em paz se for atendido e, caso contrário, de promover uma série de tormentos.
O grau de amadurecimento da Bioética (centenária por Paul Max Fritz Jahr, 1895-1953 e cinquentona por Van Renssalaer Potter) me parece já suficiente para qualificar uma cooperação com a sociedade a respeito de contraposições do considerar o Homo sapiens o cume – ou não- do processo evolutivo. Envolve a questão “o que somos e o que podemos ser“, que no transumanismo transcende aos efeitos da educação.
Uma contribuição da Bioética seria para o juízo de admissibilidades na aliança entre ética da virtude e ética da evolução do ser humano que minimiza o valor de demandas morais, aproxima a virtude da biologia e torna a incorporação do empirismo em contextos de virtude uma versão da expressão genética. Assim, num contexto de tecnologia sempre vista com bons olhos, de superioridade do modelo mais recente, uma avaliação de bom ou mau, certo ou errado, o dever com o “correto” ou com o “normatizado”, poderia ser substituído por apreciação de endossável ou não endossável em função de circunstâncias eminentemente tecnológicas. Uma contraposição à pluralidade da condição humana que habitualmente provoca diversidades de escolha moral para mesmas situações.
No âmbito da aplicação na saúde da ética da virtude, que reza que devemos nos responsabilizar não somente pelas intenções como também pelas consequências, é útil considerar que os métodos beneficentes disponíveis na medicina- e nas ciências da saúde de modo geral- estão invariavelmente associados à maleficência – potencial de malefícios. Ou seja, a intenção do benefício tecnocientífico é xifópaga com a responsabilidade pelo potencial danoso. O quanto isto pode mudar pelo transumanismo é uma interrogação.
A Bioética da Beira do leito preza a conjugação do uso da ciência e da tecnologia para a obtenção de melhora da qualidade de vida humana (aspectos biomédicos, infraestrutura para água e esgoto) numa perspectiva de moderação, sem saltos abruptos na direção do extremo do “sem as pessoas do jeito como são hoje“. A Bioética da Beira do leito, posiciona-se, assim, qual uma cancela com tempo variável entre o acionamento e a abertura visando a evitar o desenvolvimento de uma sociedade distópica por uma afoita subversão antropológica e que inclui a desintegração do valor das correlações biológicas e socioeconômicas como hoje nascemos.
A Bioética da Beira do leito valoriza a liberdade (de criação) com a responsabilidade (sobre a criatura), e ao mesmo tempo, preocupa-se com uma competição de oportunidades de acesso/consumo por seres com distintos graus de incorporação do transumanismo, passível de fomentar desigualdades sociais e de impactar na empatia/solidariedade dada pela vulnerabilidade. Tensões são possíveis de se formar quando de questionamentos sobre quem ou o que está de fato no controle – a parte humana, individualidades, empresariado e políticos, ou a parte artificial, direcionamento por máquinas – e seus desdobramentos relativos à identidade do paciente e ao respeito ao direito à autonomia (consentimento).
A Bioética da Beira do leito entende que substituições do biológico pelo metabiológico – por exemplo, desenvolvimento de características físicas e de habilidades por manipulação genética – podem se enquadrar na ideia que se sabe onde começa, mas não como termina. Associa, desta forma, o transumanismo a um potencial de alocar aspectos da vida humana num plano inclinado escorregadio, cada um deles podendo ou não atingir a parte mais inferior. Por isso, a cautela quanto a escolhas e ao consumo de transformações com ponto final indefinido.