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1163- Sem dúvida, temos dúvidas (Parte 2)

Bioamigo, você, concentrado no paciente e comprometido com o profissionalismo, personificando um dinâmico agente moral da beira do leito, fazendo malabarismos para não perder o equilíbrio no estado da arte, não para de ter dúvidas na beira do leito. Jamais teve – e terá-  um dia sem dúvidas, porque envolve-se com a essência e ao mesmo tempo com a existência. Por isso, assim percebendo, você não para de pensar, porque as dúvidas não deixariam, e até quando parece que não há como evitar dúvida diagnóstica, você, assim mesmo, nômade que é na mente profissional, encontra justificativas para prescrever um tratamento com prudência e zelo.

A beira do leito porque é civilizada é fonte natural de dúvidas. Ela carrega a tradição do exercício intelectual da dúvida e um de seus efeitos é o bumerangue da curiosidade que se atira como dúvida desde a assistência e retorna como uma veracidade científica, tendo mudado o trajeto na bancada da pesquisa. Mesmo a medicina baseada em evidências, por mais que o termo diretriz se imponha, não permite a abolição das dúvidas.

O Prof. Décourt (1911-2007) tinha um credo que se iniciava por Creio na medicina. Persiste útil,  mas, em tempos de tanta disponibilidade tecnocientífica, modernidade líquida e pós-verdade, inevitáveis dúvidas fazem-se autênticas e geram tanto fim de crenças quanto início de outras.

O valor do exercício da dúvida alinha-se à prudência- ética e virtude. A Bioética da Beira do leito entende, inclusive, que a dúvida quantum satis deve compor o kit do médico contemporâneo – capitaneado pelo imprescindível carimbo sem o que não somos, não estamos e não ficamos médicos-,  sob risco de sofrer interpretações de infração ética.

Assim, é vantajosa a coleção de interrogações: Já exerci a dúvida? Porque duvido? Do que duvido? Devo mesmo duvidar? Immanuel Kant (1724-1804) entendia que o ceticismo é local de descanso da razão, mas não sua moradia. Mas durante o tal descanso, uma coisa é a torrente de pensamentos em busca de uma forma produtiva, racional, outra coisa é o preço desta estética exigir um redemoinho tormentoso e estéril.

Dúvidas incluem indeterminações. O que se apresenta vago pode gerar pensamentos contrapostos que se atropelam em busca de uma certeza. Não faltam verbalizações na beira do leito que trazem indeterminações: o paciente apresentou uma melhora (o bastante para mudar o mau prognóstico?), o medicamento demora um pouco para fazer efeito (quanto tempo ainda o paciente sentirá a queixa?), precisamos baixar a pressão arterial (qual valor já é suficiente por enquanto para evitar uma consequência grave?).

Ou seja, o sentido destas dúvidas é que pequenas variações não parecem afetar a situação. Por isso, a conexão entre dúvida e indeterminação nos remete a Eubulides de Mileto. O filósofo grego  viveu no século IV ac e formulou o paradoxo de sorites: Considerando 1000 grãos como um monte, 999 ainda seriam um monte, 998 também, mas a partir de quantos retirados não mais caracterizar-se-ia um monte? Ou quantos fios de cabelo devem cair de um cabeludo para que mereça ser chamado de careca? Nenhum consenso, sem dúvida.

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