Nasceram no mesmo ano de 1885. Astrogildo Machado, em agosto, na cidade paulista de São José dos Campos e Cezar Guerreiro, em setembro, no Belém do Pará. Eles vieram a se conhecer no Rio de Janeiro e ambos foram contratados no Instituto Manguinhos, no mesmo ano de 1911.
O diretor deste tradicional Centro de Pesquisa era Oswaldo Gonçalves Cruz (1872-1917), quem enviara o mineiro de cidade de Oliveira, Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas (1879-1934), para combater a malária, em 1907, endemia que prejudicava a construção da Estrada de Ferro Central do Brasil no seu estado natal.
No vilarejo de Lassance, Chagas revelou ótimo senso clínico fora de ambulatório e enfermaria, mais precisamente, nas casas de pau a pique dos habitantes. Com objetividade e alta capacidade de trabalho, ele descobriu, praticamente sozinho, a Tripanosomíase Americana em seus aspectos clínicos, epidemiológicos, parasitológicos e anatomopatológicos. Acertou na mosca, ou melhor, no mosquito, com escassos recursos.
Chagas percebeu o papel do triatomídio -vetor que cuidava tanto de si, chupando sangue, quanto do então denominado Schizotripano, infestando uma nova pessoa-hospedeiro. Era a carona que promovia mais parasitemia humana em prol da perpetuação da espécie e que se tornava etiopatogenia de megacorações, megaesôfagos e megacólons.
Em 1909, Carlos Chagas, então com 30 anos de idade, tirou o passaporte para a celebridade. Veio na forma da publicação de Nova Tripanozomía Humana, em Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, um artigo bilíngue, em verdade um pequeno tratado sobre a doença com 60 páginas em duas colunas: a da esquerda escrita em português e a da direita em alemão, uma sacada genial de comunicação científica para a fama imediata. À época, não se preparava um paper, o atual anglicismo era um germânico manuskript.
E neste passaporte do reconhecimento internacional, em 1921, foi aposto um visto de entrada numa comunidade selecionadíssima- quer dizer, quase foi.
Neste ano, Chagas, aos 42 anos de idade, foi pré-escolhido para receber o Prêmio Nobel de Medicina (o mesmo ano em que Albert Einstein foi laureado em Física). Não ganhou, mas também não perdeu para outro- vã consolação-, pois o valor monetário não foi distribuído para ninguém, tendo sido depositado num fundo especial do Prêmio Nobel.
A contrariedade teria sido obra de incríveis forças de outros países invejosos? Infelizmente, diz a História, foram ilustres cientistas compatriotas de Chagas que desaconselharam a Academia Sueca, quando esta solicitou aos órgãos brasileiros informações pessoais e profissionais sobre o indicado à láurea.
No Brasil, à época, a doença de Carlos Chagas tinha sido colocada sob suspeita por acadêmicos que não conseguiam enxergar as evidências, sabe lá por quais razões. Por isso, a pesquisa e o ensino sobre a doença de Carlos Chagas estavam naquele início da década de 20 muito reduzidos nas nossas universidades. Para se ter uma ideia do prestígio internacional renegado em terra natal, o holandês Willen Einthoven (1860-1927) só foi indicado para o Prêmio Nobel em Medicina em 1924, cerca de 20 anos após ter inventado o galvanômetro de corda, precursor do eletrocardiógrafo.
Uma irreparável mácula na história da Academia Nacional de Medicina. Nestes 100 anos subsequentes, a Medicina brasileira não teve nova chance.
Assim que Chagas voltou ao Rio de Janeiro, as pesquisas sobre a endemia continuaram no Instituto Manguinhos. Oswaldo Cruz chamou Astrogildo (cunhado de Carlos Chagas) e Cezar e deu-lhes a tarefa de analisar aspectos da nova doença nos laboratórios daquela instituição.
Quatro anos após a publicação do artigo original de Carlos Chagas surgiu: Da reação de Bordet e Gengou na moléstia de Carlos Chagas como elemento diagnóstico, na revista Brasil Medico em 1913, sob autoria de Guerreiro e Machado. Tratava-se do emprego de uma reação de fixação de complemento descrita na Europa em 1900- o belga Jules Bordet (1870-1961) foi mais feliz do que Carlos Chagas e ganhou o Prêmio Nobel de Medicina em 1919-, portanto a originalidade do exame brasileiro estava na utilidade para uma nova doença.
Início de uma fértil linha de pesquisa por dois jovens médicos, então com 28 anos? Estreia para o que hoje poderia ser chamado de um promissor Curriculum Lattes? Negativo! Astrogildo e Cezar não voltaram ao tema nos mais 30 anos de vida. Astrogildo faleceu em 1945 e distinguiu-se por contribuições veterinárias e Cezar lhe sobreviveu por quatro anos.
Quem folhear o livro Diseases of the Heart, editado por Eugene Braunwald (nascido em 1929), encontrará Machado Guerreiro test, uma rara menção ao Brasil no corpo do texto do livro. Este exame laboratorial é citado no capítulo Chagas disease, a denominação na língua inglesa. A nossa designação até a década de 50 foi Doença de Carlos Chagas (Viana G- Contribuição para o estudo da anatomia patológica da “moléstia de Carlos Chagas”, Mem Inst Oswaldo Cruz 3:276-294, 1911. Pondé A- A cardiopatia chagásica na doença de Carlos Chagas, Arq Bras Cardiol 1:27-70, 1948). Simplificamos para Doença de Chagas por influência norte-americana, como resultado da “tradução” de Chagas Disease. Yes, nós temos Chagas!
Astrogildo e Cezar são cientificamente xifópagos como outros tantos na Cardiologia (Bezold-Jarich, Stokes-Adams, Frank-Starling, Blalock-Taussig e Cheyne-Stokes). A dupla tornou-se inseparável- diríamos uma literal fixação por um complemento laboratorial- às custas de um método que não era criação deles e de uma doença que não lhes representou continuidade de pesquisa.
Astrogildo e Cezar atuando como dois satélites de Chagas conseguiram ter também luz própria- e tão somente com uma nota preliminar. Globalizaram-se como epônimos!
Obra prima num único golpear de um certeiro Machado Guerreiro!