PUBLICAÇÕES DESDE 2014

1174- Sem dúvida, temos dúvidas (Parte 13)

No livro Entre o Passado e o Futuro, Hannah Arendt (1906-1975) ao questionar-se sobre o que é liberdade responde que conceber a liberdade ou o seu oposto é como entender a noção de um círculo quadrado. A dificuldade passa pela contradição entre nossa consciência e princípios morais que nos dizem que somos livres e portanto responsáveis e a experiência cotidiana no mundo externo na qual nos orientamos em conformidade com o princípio da causalidade (nexo entre causa e efeito, surgimento de um primeiro fato condiciona um segundo).  O Eu primariamente livre não aparece de modo claro no mundo fenomênico.

APF sentia-se um caçador-coletor na Residência médica e cuidadoso na seleção do que tomar para si, particularmente a respeito de atitudes. Incorporava consciente que assim aprimorava seu Eu – contínuo processo de vir a ser- de autenticidade profissional para honrar a responsabilidade simbolizada pelo bater o carimbo com seu nome e número do CRM. Vislumbrava compromisso consigo próprio, preservação ética/moral/legal. APF valorizava o autocontrole para não se desviar do foco dado pelo Princípio fundamental Vi do Código de Ética vigente: O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício, mesmo depois da morte. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativas contra sua dignidade e integridade.

O jovem médico se por um lado aproximava-se da filosofia cínica por dispor-se a ser desobediente e insubmisso frente ao que enxergava como falsos valores, por outro se distanciava da semântica de cínico, um inescrupuloso que sabe o preço mas não o valor.

A Bioética da Beira do leito enfatiza que a adjetivação do aprendizado ideal nas ciências da saúde como livre e esclarecido exige o adendo da expressão no grau mais possível. O jovem médico assim queria ao seu jeito. Está ele em paz consigo quando no avesso da indiferença dedica-se prover ao paciente mais acessibilidade aos significados da tecnociência, jamais emparedando a liberdade do paciente ou valendo-se da vulnerabilidade naturalmente acentuada pela doença para se sobrepor. Entende que assim exerce a prudência na medida acolhedora ao paciente, despreocupa-se com o que a medicina defensiva poderia enquadrar na prudência nos termos do Art. 1º do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

Inconscientemente afinado com a Bioética da beira do leito, o jovem médico compreendia que o vulnerável precisava fortemente de um paternal acolhimento profissional. Desejava o mesmo de certos supervisores. Durante sua exposição pensei- e transformei em discussão: por um lado é equivocada a ideia de uma pasteurização na supervisão dos Residentes, é importante a diversidade de exemplos profissionais,  por outro lado é comum o sistema impor pragmatismos ao humanismo no ecossistema da beira do leito.

É sempre enriquecedora uma discussão sobre o real significado de liberdade. Pacientes ficam em situação de encarcerados por sintomas e sofrimentos, que por mais que tenham saídas, no fundo vivenciam-se numa solitária- só eles podem fornecer o sangue para exame, tomar os comprimidos, ter um órgão operado. Embora haja a liberdade teórica para um não consentimento à recomendação médica, no habitual, fica difícil a liberdade prática para o paciente porque livrar-se de sintomas e de sofrimentos requer serem conduzidos pela tecnociência da Saúde.

Foi justamente a leitura de um artigo que escrevi sobre o dilema entre beneficência paternalística e respeito à autonomia, especificamente sobre a atual demonização do conceito de paternalismo na beira do leito, que motivou APF a me procurar. Ele se identificou com o texto, imprimiu, guardou na mochila, releu, e após dois meses resolveu me contatar. Deduzi que esta afinidade facilitou animar-se a visitar com confiança um ambiente para exercer um “Conhece-te a ti mesmo”. Era um jovem Telêmaco – o filho de Ulisses e Penélope- instado a escolher o próprio futuro, encontrar o seu lugar no ecossistema da beira do leito, reconhecer sua própria identidade.

O jovem médico apreciara, no artigo que o conduziu, a análise sobre a calibragem do nudge – uma palavra sem tradução específica – para a beira do leito, termo que está ligado ao Prêmio Nobel de Economia 2018 Richard Thaler (nascido em 1945). APF concordou com a interpretação de nudge como um empurrão colhedor do profissional da saúde para o paciente pertinente na conexão médico-paciente, algo como uma ajuda para  alinhar mira e alvo já com o dedo no gatilho da decisão. Uma maneira fraternal do profissional da saúde guiar escolhas mais qualificadas do leigo sem comprometer a liberdade individual, longe da intenção de forma sutil de imposição ou de convencimento ardiloso (nada de expor vantagens do tipo é só metade… do dobro).

De certa forma, a prática do nudge no ecossistema da beira do leito dá movimento a inércias decisórias sustentando o maior peso que pacientes costumam dar ao presente – por exemplo assintomático-  em relação a um futuro- por exemplo, que a medicina prevê como doloroso. É notório que resistências dos pacientes provocadoras de não consentimentos não são muito racionais, pelo menos pelo ângulo da medicina.

A Bioética da Beira do leito enfatiza que o esforço profissional para que o paciente arrume a linha de visada em nada compromete o respeito ao seu direito à autonomia na tomada de decisão. É triste o que vemos com certa frequência, o receio do abuso compromete o (bom)uso.

A Bioética da Beira do leito entende que a prática do nudge, no sentido de acompanhar de perto o processo de decisão desenvolvido pelo paciente para melhor qualificá-lo  sem romper sua liberdade de escolha, pode ser visto em muitas situações como um comportamento profissional caloroso ao agrado de pacientes indecisos – afinal são leigos- que ficariam com grandes dificuldades de resposta ao profissional da saúde se prevalecesse a frieza e contensão da medicina defensiva preocupada com perspectivas contenciosas da conexão médico-paciente.

O jovem médico endossou a interpretação constante do artigo que a burocratização do Termo de consentimento em – APENAS ASSINA AQUI!- é um desserviço contemporâneo para o legado hipocrático, visto como uma inibição para o nudge. Um dos aspectos é que os esclarecimentos por escrito têm o potencial de, não somente serem aplicados ao paciente – quando acontece- por profissionais com preparo muito aquém do necessário para responder a dúvidas, como também de provocar uma captação de leitura da informação dissociada da intenção da informação.      APF1

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES