No livro Entre o Passado e o Futuro, Hannah Arendt (1906-1975) ao questionar-se sobre o que é liberdade responde que conceber a liberdade ou o seu oposto é como entender a noção de um círculo quadrado. A dificuldade passa pela contradição entre nossa consciência e princípios morais que nos dizem que somos livres e portanto responsáveis e a experiência cotidiana no mundo externo na qual nos orientamos em conformidade com o princípio da causalidade (nexo entre causa e efeito, surgimento de um primeiro fato condiciona um segundo). O Eu primariamente livre não aparece de modo claro no mundo fenomênico.
APF sentia-se um caçador-coletor na Residência médica e cuidadoso na seleção do que tomar para si, particularmente a respeito de atitudes. Incorporava consciente que assim aprimorava seu Eu – contínuo processo de vir a ser- de autenticidade profissional para honrar a responsabilidade simbolizada pelo bater o carimbo com seu nome e número do CRM. Vislumbrava compromisso consigo próprio, preservação ética/moral/legal. APF valorizava o autocontrole para não se desviar do foco dado pelo Princípio fundamental Vi do Código de Ética vigente: O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício, mesmo depois da morte. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativas contra sua dignidade e integridade.
O jovem médico se por um lado aproximava-se da filosofia cínica por dispor-se a ser desobediente e insubmisso frente ao que enxergava como falsos valores, por outro se distanciava da semântica de cínico, um inescrupuloso que sabe o preço mas não o valor.
A Bioética da Beira do leito enfatiza que a adjetivação do aprendizado ideal nas ciências da saúde como livre e esclarecido exige o adendo da expressão no grau mais possível. O jovem médico assim queria ao seu jeito. Está ele em paz consigo quando no avesso da indiferença dedica-se prover ao paciente mais acessibilidade aos significados da tecnociência, jamais emparedando a liberdade do paciente ou valendo-se da vulnerabilidade naturalmente acentuada pela doença para se sobrepor. Entende que assim exerce a prudência na medida acolhedora ao paciente, despreocupa-se com o que a medicina defensiva poderia enquadrar na prudência nos termos do Art. 1º do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.
Inconscientemente afinado com a Bioética da beira do leito, o jovem médico compreendia que o vulnerável precisava fortemente de um paternal acolhimento profissional. Desejava o mesmo de certos supervisores. Durante sua exposição pensei- e transformei em discussão: por um lado é equivocada a ideia de uma pasteurização na supervisão dos Residentes, é importante a diversidade de exemplos profissionais, por outro lado é comum o sistema impor pragmatismos ao humanismo no ecossistema da beira do leito.
É sempre enriquecedora uma discussão sobre o real significado de liberdade. Pacientes ficam em situação de encarcerados por sintomas e sofrimentos, que por mais que tenham saídas, no fundo vivenciam-se numa solitária- só eles podem fornecer o sangue para exame, tomar os comprimidos, ter um órgão operado. Embora haja a liberdade teórica para um não consentimento à recomendação médica, no habitual, fica difícil a liberdade prática para o paciente porque livrar-se de sintomas e de sofrimentos requer serem conduzidos pela tecnociência da Saúde.
Foi justamente a leitura de um artigo que escrevi sobre o dilema entre beneficência paternalística e respeito à autonomia, especificamente sobre a atual demonização do conceito de paternalismo na beira do leito, que motivou APF a me procurar. Ele se identificou com o texto, imprimiu, guardou na mochila, releu, e após dois meses resolveu me contatar. Deduzi que esta afinidade facilitou animar-se a visitar com confiança um ambiente para exercer um “Conhece-te a ti mesmo”. Era um jovem Telêmaco – o filho de Ulisses e Penélope- instado a escolher o próprio futuro, encontrar o seu lugar no ecossistema da beira do leito, reconhecer sua própria identidade.
O jovem médico apreciara, no artigo que o conduziu, a análise sobre a calibragem do nudge – uma palavra sem tradução específica – para a beira do leito, termo que está ligado ao Prêmio Nobel de Economia 2018 Richard Thaler (nascido em 1945). APF concordou com a interpretação de nudge como um empurrão colhedor do profissional da saúde para o paciente pertinente na conexão médico-paciente, algo como uma ajuda para alinhar mira e alvo já com o dedo no gatilho da decisão. Uma maneira fraternal do profissional da saúde guiar escolhas mais qualificadas do leigo sem comprometer a liberdade individual, longe da intenção de forma sutil de imposição ou de convencimento ardiloso (nada de expor vantagens do tipo é só metade… do dobro).
De certa forma, a prática do nudge no ecossistema da beira do leito dá movimento a inércias decisórias sustentando o maior peso que pacientes costumam dar ao presente – por exemplo assintomático- em relação a um futuro- por exemplo, que a medicina prevê como doloroso. É notório que resistências dos pacientes provocadoras de não consentimentos não são muito racionais, pelo menos pelo ângulo da medicina.
A Bioética da Beira do leito enfatiza que o esforço profissional para que o paciente arrume a linha de visada em nada compromete o respeito ao seu direito à autonomia na tomada de decisão. É triste o que vemos com certa frequência, o receio do abuso compromete o (bom)uso.
A Bioética da Beira do leito entende que a prática do nudge, no sentido de acompanhar de perto o processo de decisão desenvolvido pelo paciente para melhor qualificá-lo sem romper sua liberdade de escolha, pode ser visto em muitas situações como um comportamento profissional caloroso ao agrado de pacientes indecisos – afinal são leigos- que ficariam com grandes dificuldades de resposta ao profissional da saúde se prevalecesse a frieza e contensão da medicina defensiva preocupada com perspectivas contenciosas da conexão médico-paciente.
O jovem médico endossou a interpretação constante do artigo que a burocratização do Termo de consentimento em – APENAS ASSINA AQUI!- é um desserviço contemporâneo para o legado hipocrático, visto como uma inibição para o nudge. Um dos aspectos é que os esclarecimentos por escrito têm o potencial de, não somente serem aplicados ao paciente – quando acontece- por profissionais com preparo muito aquém do necessário para responder a dúvidas, como também de provocar uma captação de leitura da informação dissociada da intenção da informação.