Pacientes Testemunha de Jeová têm motivos religiosos ligados à consciência sobre a própria vida que lhes exigem negar consentimento à recepção de transfusão de sangue, que se efetivada mudaria irremediavelmente sua vida de conforto espiritual.
A proibição à transfusão de sangue é uma extensão no século XX dos preceitos decorrentes dos estudos interpretativos da Bíblia sob a liderança de Charles Taze Russell (1852-1916) – primeiro presidente da Sociedade Torre de Vigia -, na segunda metade do século XIX, em relação a aspectos envolvendo a abstenção ao consumo de sangue.
Envolve a perspectiva da vida eterna e relaciona-se a uma estrita observância literal da Bíblia: porque a alma de toda carne é o seu sangue, que é sua alma. Eis por que eu disse aos israelitas: Não comereis sangue de animal algum, porque a alma de toda carne é o seu sangue; quem o comer será eliminado (Levitico, 17.14).
Quando a intenção médica bem fundamentada de prescrever transfusão de sangue colide com orientação religiosa, verifica-se uma ruptura entre um pensamento técnico e um pensamento ideológico concernente ao significado da posição de uma doença entre a vida e a morte. Diz respeito gestão na beira do leito do risco de uma causa-mortis entrelaçada com restrição a uma terapêutica validada e com potencial reversor do mau prognóstico.
A negativa do paciente Testemunha de Jeová não representa nem desconfiança à capacidade técnica do prescritor nem desrespeito à autoridade para fazer intervenções de saúde, trata-se de um efeito reativo ao poder da tecnociência porque emerge um poder religioso.
Mesmo assim, vivenciar um não consentimento do paciente que se deseja bem acolher não é nada atraente para o profissional da saúde. Na verdade, suas bagagens pre e pós profissionais unem-se num condicionamento de rejeição a situações de negação de beneficência validada e aplicável na beira do leito quando implicam em alta probabilidade de morte do paciente.
A situação conflituosa expressa a exacerbação das muitas dificuldades de conciliação entre princípios da Bioética, de harmonização entre a visão de imperiosa da beneficência e de moralidade da autonomia e que costumam ocorrer sucessivamente na beira do leito. Além das implicações na qualidade da conexão profissional da saúde-paciente, estende-se para as conexões profissional da saúde-consigo mesmo, profissional da saúde-outro profissional da saúde e profissional da saúde-sociedade.
A Bioética da Beira do leito reforça que a interseção entre beneficência e autonomia inserida na Bioética dita principialista conduz à necessidade contemporânea de uma adjetivação progressiva da conduta na beira do leito. Inicialmente, estabelece-se a conduta recomendável que é de iniciativa profissional e alicerçada na tecnociência validada e alinhada à beneficência; a seguir forma-se a conduta aplicável pelo efeito da apreciação individualizada da não maleficência sobre a conduta recomendável; por último, resulta a conduta consentida influenciada pelo direito do paciente à autonomia.
A Bioética da Beira do leito adverte para o valor da prudência para o atapetamento deste caminhar e lembra que uma vez determinada a conduta consentida, o zelo com o consentido passa a ser o aspecto ético maior das próximas etapas de atenção às necessidades de saúde do paciente.