Bioamigo, o passar do tempo, este onipresente, é inexorável. Um contínuo que determina um antes e um depois que apresenta relevante significado na beira do leito. A Bioética da Beira do leito registra uma enormidade de determinações que gira em torno de prazos. Por exemplo, o intervalo entre consultas de mesmo paciente.
Pois é, bioamigo, todos os dias chega o dia determinado pelo agendamento para um conjunto de pacientes! Focando num paciente específico, após um antes de alguns meses que não lhe causou apreensões, o imediatismo da consulta programada é um conhecido provocador de pensamentos nômades por incógnitas.
Vamos ilustrar com um paciente octogenário que sempre classificou a ida à consulta médica como ato de coragem, sua memória recheada de fatos periodicamente confirma a tese do enfrentamento apesar do medo. Ele considera e verbaliza para familiares e amigos que se trata de uma coragem natural. Em sua opinião, ela teve origem há décadas, forjada na rotina de frequentar o pediatra sob a confiança da jovem mãe zelosa e preocupada com o primeiro filho, interpretação que lhe cativa e ajuda como força motriz para se deslocar de modo independente do conforto domiciliar – felizmente estava bem- para a presença dependente do médico- sujeita a qualquer orientação.
O paciente referido é um aposentado da profissão, não da vida útil, faz questão de ressaltar a seus interlocutores. Não lhe faltam compromissos por iniciativas dele próprio, cumpridas com boa capacidade cognitiva e independência de locomoção.
O paciente tem alguns diagnósticos, apresenta bom controle clínico com uma polifarmácia cuidadosamente organizada pela esposa, não tem novas queixas atuais, entende usufruir de boa qualidade de vida nos limites de como se organizou. O paciente percebe, inclusive, que a velhice livrou-o de certas amarras e enxerga numa sensação de pessoa sem idade definida um facilitador para a seleção de indicadores de qualidade de vida que sustentam sentidos de vida, prazeres e aceitações alinhados à terceira idade.
Sentado na sala de espera do médico, o paciente ao mesmo tempo em que se distrai com uma revista cuja leitura se presta a apenas fazer o tempo passar sem se sentir, está consciente que a revisão de saúde é necessária, dispõe-se de bom grado à consulta com seu médico de vários anos, uma empatia que nasceu nas dependências de um Pronto Socorro quando apresentou um quadro infeccioso agudo. Adaptaram-se. Contou muito o desenvolvimento de processos de tomada de decisão bem dialogados e esclarecidos.
Os encontros têm se dado segundo os moldes da medicina contemporânea, muito conhecimento, muitas habilidades – por parte do médico- e algumas escondidas sobre espontaneidades humanas – por parte do paciente cauteloso com total auto revelação. Toda conexão médico-paciente é como impressão digital, inexistem duas iguais nascidas ou a nascer. Será que a robotização por inteligência artificial mudará esta característica?
Na decisão por respeitar a frequência de retorno ao médico, é impossível para o paciente eliminar algum grau de ansiedade pelas perspectivas, mas que, como corolário, impede sentir culpa por desatenção à própria saúde. Uma tensão entre liberdade teórica – não agendar consulta- e não-liberdade prática- a consciência. Esta de alguma forma faz conviver com o pensamento de Voltaire (François-Marie Arouet- 1694-1778): o melhor caminho é nunca fazer nada contrário à própria consciência, pois assim podemos usufruir a vida e não temer a morte.