REFLEXÕES BIOÉTICAS PARA SE CONVIVER EM UM MUNDO PÓS-COVID-19
Autor: Dr. Marco Aurélio Scarpinella Bueno
Colaboradores: Dr. Henrique Grunspun, Dr. Abram Topczewski e Dr. Max Grinberg
Produção do Centro de Bioética do Hospital Israelita Albert Einstein
Dormindo com o Inimigo é o título de um filme de suspense do início da década de 1990 estreado por Julia Roberts (nascida em 1967), logo após sua carreira ter deslanchado ao estrelar Uma Linda Mulher (1990). Mais sucesso de público que de crítica, uma resenha da época assinalou que o filme era uma versão da velha fórmula onde a vítima até pode correr, mas não pode se esconder (Ebert R. Sleeping with the Enemy https://www.rogerebert.com/).
Com este mote em mente e garimpando velhos filmes em tempos de isolamento social, nada mais oportuno que uma Sessão da Tarde para despertar algumas reflexões bioéticas a serem feitas em um mundo pós-COVID-19, ou que na melhor das hipóteses, passará a conviver com o SARS-CoV-2.
Muito já se escreveu que a pandemia de COVID-19 ajudou a aprofundar graves problemas estruturais por todo o planeta. De uma forma geral as desigualdades só ficaram maiores e, como diz o ditado popular, “quem pode, pode; quem não pode se sacode”.
Se ética é a busca de justificativa para verificar a adequação ou não das decisões tomadas (Goldim JR Bioética e Pandemia de Influenza Rev HCPA 2009;29(2):161-166) e a bioética trata de conceitos e ações que visam identificar e auxiliar na resolução dos inúmeros conflitos éticos que surgem diariamente no cuidado ao paciente (Segre M & Cohen C (Orgs). Bioética 1995.São Paulo: Edusp), a pandemia da COVID-19 também é uma crise (bio)ética, na medida em que envolve valores referentes à vida.
A pandemia que enfrentamos neste momento colocou em evidência uma crise de valores que envolvem diversas prioridades da atividade médica, de investimentos em pesquisa aos investimentos em recursos para a saúde, sem falar nos limites entre a saúde individual e coletiva que foram postos em xeque.
Uma pandemia como a da COVID-19 impõe desafios de gestão de saúde pública, de políticas sócio- econômicas na área da saúde e de políticas ambientais que ainda não foram abordadas por uma reflexão bioética minuciosa.
E faz muita falta um arcabouço teórico que ampare algumas das difíceis decisões tomadas nestes momentos, que embora tenham apoio legal carecem de um suporte ético que possa ser traduzido de maneira clara aos indivíduos afetados. Um exemplo são as medidas de isolamento social que, mesmo embasada em estudos científicos, podem parecer meras imposições autoritárias se não forem percebidas dentro de um contexto ético mais abrangente.
Não podemos esquecer que em situações de calamidades (e a pandemia é uma calamidade) a sobrevivência individual depende da sobrevivência coletiva, assim como as ações individuais de proteção dependem de ações coletivas sinérgicas correspondentes. Ninguém pode se proteger individualmente de uma epidemia ou de uma catástrofe natural. As ações de proteção ou prevenção são sempre de natureza coletiva.
No Brasil, em particular, décadas e décadas (independente para qual governo olhemos no retrovisor) de descaso com atenção primária à saúde e com a pesquisa científica, só para ficar nos dois aspectos mais facilmente perceptíveis neste momento, escancaram toda a nossa dificuldade atual de lidar com a pandemia.
É importante assinalar que se por um lado, qualquer forma de restrição à pesquisa científica é imperdoável, mesmo países que há anos destinam à ciência entre 2% e 4% do seu Produto Interno Bruto (no Brasil este índice não passa de 1,3%) – Investimentos Federais em Pesquisa e Desenvolvimento: Estimativas para o Período 2000-2020 https://www.ipea.gov.br/– também não estiveram totalmente preparados para o enfrentamento da pandemia. Ou seja, não é preciso apenas vontade e dinheiro, mas também um planejamento adequado.
Para tal é essencial haver políticas públicas bem estabelecidas. O modelo neoliberal exclusivo em que o mercado privado regula a saúde a seu bel prazer não foi suficiente. Uma análise crítica mostra que é preciso haver alguma participação do poder público para garantir a assistência aos mais vulneráveis, que são sempre os que mais sofrem. Mas esta análise pode ser mais bem feita pelos economistas e sociólogos.
De qualquer forma é importante que como contrapartida a este auxílio haja a reciprocidade de quem é beneficiado. Para que se estabeleça esta relação de dupla via é essencial um valor muito caro à bioética que é a veracidade, afinal de contas as bases sobre as quais a ética médica e a bioética foram erguidas se alicerçam sobre as informações verdadeiras fornecidas ao paciente sobre seu diagnóstico, sobre os riscos e efeitos adversos de determinado tratamento, assim como eventuais participações em protocolos de pesquisa cientifica.