Que o ano brasileiro começa depois do carnaval é folclórico. Este ano do novo coronavírus enquadrou-se. O tempo quantitativo dos dias e meses que assim se iniciam segundo o populário foi rapidamente substituído por um tempo qualitativo… e de má qualidade. Os dias passaram a se suceder como estatísticas de casos – que dia é hoje? trocado para por quantos casos hoje? Uma tristeza.
A população brasileira está sendo modelada em função da zoonose enigmática, quantos vírus já nos colonizaram e apesar disto mantivemos nossa independência? Presentemente, somos todos solidários na teoria, porém individualistas na prática, ouvindo o paradoxo de os médicos recomendarem internação domiciliar– para não se arriscarem a ficar doentes.
Conclama-se para o avesso do progresso porque é onde se situam as forças defensivas- uma hibernação social pela consciência da necessidade de preservação, a liberdade de escolha tolhida pelas circunstâncias, o domicílio como retorno ao útero protetor.
Pelas flutuações na intensidade de medo e ansiedade com alta participação das redes sociais – que não houve na pandemia da gripe A H1N1 há 10 anos- e sem muito tempo para pensar, a obediência às determinações ocorre com um misto de resignação e revolta. Curiosamente, a maioria não vai ficar sabendo que passou ao largo da gravidade da pandemia atual por causa ou apesar do isolamento.
Profissionais da saúde contam com a visão crítica da Bioética a respeito do discernimento e da responsabilidade, vale dizer das escolhas morais imperativas. Conflitos de interesse e ganhos secundários, por exemplo, são fortemente rechaçados por um conceito amplo de cidadania. Uma contribuição da Bioética é reforçar que etiquetas de conveniente e de inconveniente são dependentes das peculiaridades da circunstância, quer um caso, quer um aspecto da infra-estrutura, quer um aspecto de gestão institucional.
Inserção – adição/exposição/determinação- é palavra-chave na vida de todos. Pelo uníssono da vida como o nosso maior valor espalha-se o efeito camaleão, também contagiante pelo qual cada um exerce e sofre influência sobre emoções e comportamentos do outro.
É natural que emoções observadas sejam interiorizadas no atacado em função da forte apreensão pelas previsões de elevação inevitável do número de diagnosticados e, a reboque, as inquietações sobre a morbidade e a letalidade que desafiam e impactam como um todo no bem-estar da sociedade.
Os profisionais da saúde estão acostumados por ofício a desempenhar-se frente às exigências de momento e antecipatória, matéria-prima essencial para forjar a coragem moral para reagir a este fora do habitual que se vivencia, valer-se do poder de enfrentamento e construir caminhos guiados pala História e pelo bom senso. Na situação específica do novo coronavírus, facilita sobremaneira rearrumar e proporcionar a bagagem de conhecimentos, habilidades e atitudes.
Autoridades responsáveis vivenciam o afunilamento da liberdade de escolhas, enfrentam dilemas conscientes das consequências de seus atos e lidam com o dever de equacionar e determinar medidas justificadas de obediência. A sociedade em geral vê-se menos livre, todos escravos do noticiário massacrante, instada à subordinação pelos imperativos de saúde. Os amplos vaivéns de relações entre a ciência e a ética (com a participação do bom senso) são renováveis ou revogáveis de acordo com as realidades evolutivas. A natureza mutante que envolve a causa microbiana aplica-se às providências.
Cientistas motivam-se. Holofotes iluminam vaidades. Vigaristas se aproveitam. Ética de prontidão. Bioética crescente em importância. Orientações sabe-se lá com qual fundamento pululam, parece escova de dente, cada um tem a sua.
A liberdade duela com o relacionamento entre mim e mim mesmo face à solidão induzida. É sabido que uma doença grave motiva mudanças de enxergar a vida nos pacientes, tudo indica que a vida interrompida pela pandemia sofrerá o mesmo.
O novo vírus tem liberdade de propagação, ele adere, avança, penetra e faz o ser humano ficar na contramão de Baruch Espinoza (1622-1677) que pregava que o objetivo ético do homem é o alcance do máximo de liberdade.
Lembremos Sun Tzu (545 ac-470 ac): conhecendo o inimigo e a si mesmo, não precisamos temer o resultado de cem batalhas; conhecendo a si mesmo e desconhecendo o inimigo, para cada vitória haverá uma derrota; desconhecendo a si mesmo e o inimigo, só haverá derrotas. Conhecer o inimigo é tarefa para os profissionais da saúde. Mais do que cada cidadão se conhecer é hora de reconhecermos nossas responsabilidades como pessoa humana.