Voltando às incertezas, cabe a questão: Talvez o bom senso do médico de fato isento de má intenção possa vir a ser qualificado como uma transgressão ética em algum momento do atendimento,por alguma instância ajuizadora, por exemplo, por um cientificismo exigente de evidências?
É ponto essencial, pois, além do que o paciente possa vir a considerar – a evolução clínica conta muito-, há leis, normas e regras que representam um majoritário poder avaliador e pode restringir o valor do bom senso para peculiaridades minoritárias, inclusive, não cobertas pelo princípio da autonomia. Assim, o bom senso causa dilemas de consciência profissional na beira do leito.
No jogo entre objetividades e subjetividades é pedagógico o médico dispor-se a dedicar um tempo de seus pensamentos a um exercício cognitivo sobre controvérsias espinhosas, por exemplo, o efeito quase que mágico de um simples voo comercial intercontinental desde o Brasil que deixa para trás a ilegalidade e permite carimbar moralidade numa visão pessoal de bom senso sobre suicídio assistido. Considerando para efeito didático, o que diria num suposto envolvimento no processo decisório do paciente/familiares neste turismo de eutanásia.
Quando há o esgotamento do talvez esperançoso, a busca de transformar o desespero (des-espero) em serenidade, forte evidência que desejo e medo estão sempre juntos, latitudes e longitudes fazem diferenças sobre comportamentos reais das pessoas frente a regras e valores neste mundo globalizado. Deduz-se, pois, que talvez e bom senso possam comungar substratos culturais em comum.
O exercício do bom senso em tomadas de decisão na beira do leito requer a matéria-prima das vivências profissionais. Não se entra na faculdade de medicina – muito menos se sai- com o nível de bom senso de que a beira do leito necessita, é uma construção específica tijolo a tijolo no canteiro chamado beira do leito, alinhada a um refinamento moral e sensível a spectos ético-legais. A aplicação do bom senso necessita da justificativa moral que vale o uso na circunstância e da legitimidade moral referente à maneira da realização.
Bom senso não pode faltar na organização do aprendizado em serviço sobre a pluralidade de inevitáveis situações de coração aflito (o do paciente e o dele próprio), este tum-tac continuado de razões do órgão simbólico da vida que a própria razão tem dificuldade de reconhecer. Residentes de medicina precisam desta percepção para se tornarem os doutores com saber e sabedoria que pretendem ser.
Completados 52 anos de assiduidade em beiras do leito de atenção primária/secundária/terciária/quaternária, atrevo-me a afirmar que são infinitas as combinações bilaterais de desejos, preferências, objetivos e valores em conexões médico-paciente que desafiam/valorizam/negam o bom senso em cenários de talvezes. Trata-se (tanto como verbo transitivo direto quanto como indireto) de seres humanos!
Numa perspectiva bem prática, são as combinações de forças e interesses na conexão médico-paciente que provocam os níveis de acolhida aos talvezes da medicina por parte do paciente. De um lado da conexão, está o médico respeitoso ao Art 31 do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Concorre a necessidade de o médico ver-se como um intérprete singular da situação clínica. Pela própria essência da profissão, ele não está neutro – pois tem seus deveres-, mas, pelo profissionalismo, precisa estar imparcial na influência sobre a decisão final do paciente. O bom senso para talvezes fica, pois, relativizado.
De outro lado, está o paciente que capta o médico informador-explicador ao seu modo. Ele recebe a medicina como palavras, tonalidades, expressões faciais e gestos que projetam um futuro que inclui talvezes que precisa decodificar. Pelos preenchimentos e pelos vazios, diálogos se impõem com os profissionais da saúde e com outras pessoas. Um dos objetivos dos diálogos é atingir como o médico pensa medicina, ou, pelo menos, entender suas lógicas. Um desafio ao bom senso em cenários de excesso de vulnerabilidades.
Aprendi algumas lições sobre pensar como paciente – muito eficientes sendo o próprio paciente-, quando vale aprofundar-se na sua história de vida revivida pela doença. Pode parecer tão somente um acessório no cenário, mas ela tem o dom de expor raízes do paciente, narrativas que contribuem para perceber seus modos de reagir às incertezas – e, assim, adaptar as transcrições da medicina nos esclarecimentos para a tomada de decisão. A reação-nobre na atualidade é o consentimento – ou não -, que, talvezes e bom senso à parte, é socialmente etiquetado como livre aproximação da medicina pelo Sim ou distanciamento pelo Não.