Faz parte do Juramento de Maimonides (Moshe Bem Maimon, 1135-1204): Que nem cobiça nem avareza, nem sede de glória ou de uma grande reputação possam envolver minha mente.
O norueguês Gerhard Henrik Armauer Hansen (1841–1912), epônimo da hanseníase, não seguiu a lição.
O seu nome eternizou-se na denominação atual da lepra, mas com uma mancha moral indelével.
Hansen, após o reconhecimento do caráter infeccioso da lepra por meio de um bacilo- Mycobacterium leprae-, inoculou coelhos com material de nódulos leprosos e concluiu, pelo insucesso, que a doença deveria ser humana apenas.
Foi, então, que Hansen ignorou o legado de Maimonides. Ele cometeu um deslise moral. Em 1879, portanto, aos 38 anos de idade, ele fez um corte na conjuntiva de uma paciente de 33 anos de idade com a forma cutânea da doença e inoculou material retirado de nódulo de outro paciente com diagnóstico de lepra.
Não houve o desenvolvimento de lepra oftalmológica, contudo a paciente denunciou Hansen por ter feito uma violência contra ela. Não houvera nem esclarecimento sobre o propósito do procedimento, nem consentimento da paciente, que se queixava. além do mais, de grande desconforto local e dificuldade visual.
Hansen tornou-se réu confesso. Justificou-se alegando que não estaria provocando uma nova doença na paciente. Professores testemunharam a favor de Hansen, destacando que houve uma intenção científica que poderia ser útil para o melhor conhecimento da doença.
Hansen foi considerado culpado pelo Tribunal de Justiça. Não foi preso. A pena foi a perda da condição de médico de leprosários em Bergen.
Hansen continuou as pesquisas com o bacilo da lepra, sem maior restrição pela comunidade médica da época. Em 1897, o Primeiro Congresso de Leprologia, realizado em Berlim aceitou a tese de Hansen que a lepra era transmitida de pessoa para pessoa.
Hansen conviveu com dois expoentes da Bacteriologia. O alemão Albert Ludwig Sigesmund Neisser (1855-1926) – quem identificou a Neisseria gonorroheae– tentou desviar para si a primazia da identificação do Mycobacterium leprae. Já o alemão Heinrich Hermann Robert Koch (1843-1910) – descobridor do Mycobacterium tuberculosis e Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1905- incentivou Hansen a procurar outros meios de cultura mais adequados.
Reproduzo abaixo o Juramento de Maimonides como homenagem da Bioética da Beira do leito a este filósofo que procurou harmonizar conflitos existentes entre a filosofia e a teologia:
A eterna providência nomeou-me para vigiar a vida e a saúde das Tuas criaturas.
Que o amor pela minha arte possa me impulsionar todo o tempo;
Nem cobiça nem avareza, nem sede de glória ou de uma grande reputação possam envolver minha mente;
Pois os inimigos da verdade e da filantropia poderiam facilmente me enganar e me fazer esquecer o meu sublime objetivo de fazer o bem a Teus filhos.
Que eu nunca veja no paciente nada mais do que um semelhante em sofrimento.
Conceda-me sempre a força, tempo e oportunidade para corrigir o que eu adquiri, para estender seus domínios;
Pois o conhecimento é imenso e o espírito do homem pode se estender indefinidamente para se enriquecer todos os dias com novas exigências.
Ele pode descobrir hoje seus erros de ontem, e amanhã ele pode obter uma nova luz sobre o que ele pensa estar certo hoje.
Oh, Deus, Tu me nomeaste para vigiar a vida e a morte de Tuas criaturas,
Eis-me aqui pronto para minha vocação e agora eu me volto ao meu chamado.
A História da Medicina evidencia que antes da segunda metade do século XX, parte expressiva da comunidade científica privilegiava o interesse científico em relação à humanização. O “para o bem da ciência” calava mais forte, no duplo sentido. O esclarecimento e o consentimento do paciente são jovens partícipes da comunicação médico-paciente ética observada nos dias de hoje.
Aliás, não faz muito tempo, ensinaram-me que o “interesse científico” dispensava autorização para necropsia dos familiares. Re-aprendi com a Bioética. E hoje, a alta tecnologia traz nova variável para a conciliação de interesses, a realização de autopsia não invasiva por meio de imagens captadas por ultra-som, tomografia e ressonância magnética.
Sete séculos após Maimonides, a Bioética cuida para a sintonia humana da ciência da Medicina.