Potência intelectual e potência tecnológica. Dois alicerces do vigor profissional na beira do leito. O médico sempre desenvolveu o poder da abstração e da imaginação- alta tecnologia intelectual- direcionado para as definições diagnósticas. As captações de sintomas e de sinais físicos são imediatamente metabolizadas em interpretações e assim ocorrem as depurações sobre possibilidades nosológicas. De fora do corpo do paciente visualizando fígados, pulmões, corações doentes. Simples assim, complexo assim. Muitos dizem que é uma arte em extinção.
Após a (ainda?) anamnese e exame físico do paciente, o médico segundo o modelo tradicional sob crítica formula hipóteses diagnósticas e guiado pelas decorrentes cogitações solicita exames complementares para a lapidação. Tudo conhecido, vem a tomada de decisão sobre conduta terapêutica e preventiva. Originalmente específica, cartesiana, a complementariedade foi perdendo o estrito significado do termo. Estimulada pelo progresso da imagem e de certos números, passou a competir com a tradição. Médicos com número baixo de CRM criticam, os com números mais recentes entusiasmam-se.
Pelo que se pode observar, estabeleceu-se uma obrigatoriedade de solicitação complementar com expansão além das hipóteses diagnósticas aventadas. O termo complementar parece estar mais para um termo o antônimo integrante, pela noção que a contribuição confere frequência e agilidade à certeza diagnóstica, sobre o que deve ser, o que não deve ser e aspectos associados de importância. Mais atenção à ciência, menos ao ser humano. Há situações em que pode ser justificável e aceitável, mas, noutras provoca grandes frustrações.
A medicina – e as ciências da saúde de modo geral- segue indagando e respondendo sob vários estilos de atendimento numa espiral ascendente graças à pluralização dos recursos, a forma que lhe possibilita alinhar-se às exigências dos princípios da beneficência e da não maleficência ao gosto da Bioética. Todavia, é preciso conscientizar que beneficência e não maleficência são potencialidades de efeitos e o que vale são as realizações de benefício e de não maleficio e, então, o estilo de atenção conta muito. A cautela tem alertas em palavras que não constam exatamente em dicionários, são termos da beira do leito criados para que não haja a desvalorização da clínica soberana, que diga-se de passagem, devemos evitar que se torne uma rainha da Inglaterra: incidentaloma, achado inespecífico e resultado falso positivo. Dizem que a inteligência artifical vai acabar com estes termos. Estamos, evidentemente, abertos a estas correções, mas, desde que fechados com a anamnese eo exame físico.
As abstrações e imaginações que acontecem pela anamnese do médico que deseja perguntar e deseja ouvir as respostas e pelo exame físico do médico que deseja examinar – desejos que têm oscilado negativamente, embora sejam deveres éticos, o ovo e a galinha no mesmo prato- têm espaço cativo na beira do leito. Elas precisam ser integradas às realidades proporcionadas por imagens e por números para dar a expressão contemporânea ética da atenção às necessidades de saúde do paciente.
Por isso, a não-anamnese (qualitativa ou quantitativa) e o não-exame físico não são caprichos na esteira de uma supervalorização de uma medicina inovadora baseada em alta tecnologia mais assertiva e menos abstracionista. A negação de ambos constitui-se em antimedicina, portanto, antihumana.
A Bioética da Beira do leito entende que a sobrevivência da tradição na beira do leito exige o apoio do médico ético, não faz nenhum sentido o rompimento com a alta tecnologia do raciocínio/pensamento crítico que retraduz da doença para o doente, em meio à justa valorização da alta tecnologia de máquinas.
A contínua reconstrução da beira do leito requer o olhar transdisciplinar da Bioética, a reunião de saberes distintos numa moldura ética, moral e legal, pois o calor das compreensões necessárias costuma estar muitos graus acima da frieza das recomendações de diretrizes clínicas.