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710- Abrindo instâncias sem fechar posições

lápis-desenho-do-martelo-um-juiz-125585814Há muito saber para fazer medicina na beira do leito. Ao mesmo tempo, há muito não saber como se fazer na beira do leito. Este aparente jogo de linguagem é uma realidade de angústias para o profissional da saúde. Uma atitude pode soar mais complexa do que um texto científico. Conflitos acontecem e não costumam ser lineares, eles adoram ricochetear. O risco de uma fala perdida é constante.

Quando o médico sai do útero da faculdade e há o corte do cordão umbilical – nem sempre se completa-, precisa usar equipamentos individuais de proteção profissional. Eles podem não ser suficientes para as sucessivas necessidades de viver e conviver na beira do leito. Faço o que? Eis questão recorrente. Portos seguros são, então, bem-vindos.

Uns dizem que seguro mesmo é um juiz togado dar uma decisão, pois, decisão judicial é para ser cumprida. Uma maravilha, a beneficência constitui justificativa suficiente, evitam-se culpas, previnem-se ansiedades. É verdade, mas cabe recurso. É verdade, mas traz uma vitrine de heteronomia e de paternalismo. Comitês de Bioética torcem o nariz.

Considerando que o cumprimento é para ser imediato, eventual segunda instância encontraria o caso já evoluído pela conduta imposta e, portanto, sem chance de retorno ao ponto original. Bom, então, que tal juntarmos instâncias pensadoras e orientadoras num só órgão e equipá-lo com recursos humanos de múltiplos saberes que ampliam os horizontes? Excelente ideia! Mas, já não existe? Sim, existe e chama-se Comitê de Bioética. Mas, preste atenção, a sua missão é consultiva, não é deliberativa. Então não tem o martelo simbólico do cumpra-se na mesa? Não tem. Por outro lado, tem capacidade para prover uma compreensão realista, experimentada, dos meandros da interface medicina-médico-paciente. Garantido? Não há um absoluto, mas um plausível pode ser esperado. Traz a ideia da decisão judicial como derradeira opção, esgotados todas as tentativas conciliadoras.

Foi neste clima – talvez com o viés de tentar uma resposta incisiva- que, recentemente, um colega solicitou ao Comitê de Bioética que o orientasse se deveria, ou não, encaminhar um caso de negativa de consentimento de menor de idade apoiada pelos responsáveis, pai e mãe, para uma instância não médica impositiva.

Já havia sido editada a Resolução CFM 2.232, de julho de 2019,  que dispõe no Art. 4º  que em caso de discordância insuperável entre o médico e o representante legal, assistente legal ou familiares do paciente menor ou incapaz quanto à terapêutica proposta, o médico deve comunicar o fato às autoridades competentes (Ministério Público, Polícia, Conselho Tutelar etc.), visando o melhor interesse do paciente. Abrindo um parêntesis, é curioso como um órgão de médicos considera a participação da Polícia e não faz menção a um Comitê de Bioética.

A minha posição é que um Comitê de Bioética não deve opinar sobre uma dúvida do médico quanto a encaminhar sua recomendação de conduta não consentida para avaliação e decisão por qualquer autoridade fora do campo da medicina. Esta condução deve ser diretamente do médico, da equipe, da direção clínica, do jurídico, respeite-se, mas o Comitê de Bioética não deve se envolver em tal afirmação. O que o Comitê de Bioética deve estimular e assim manter seus limites, é o diálogo entre as partes envolvidas e cooperar com o pensamento crítico sobre prós e contras de cada opção cogitável. Evita-se, assim, qualquer conotação de nós contra eles que pode ser antevista num encaminhamento de um biopoder para fora dos muros da medicina.

Para tudo isso, o Comitê de Bioética tem saberes diversos além das ciências da saúde, inclusive, do campo do Direito, para orientar sobre as conveniências e as inconveniências da comunicação ao Ministério Público, Polícia, Conselho Tutelar etc., porém, enfatizo, sem nenhuma posição de orientação ao direcionamento, apenas a título de fundamentos para resposta à questão que lhe foi submetida: devo procurar uma imposição que revogue o não consentimento que prejudica a minha avaliação profissional de melhor interesse para o paciente menor de idade?

Compreendo as alegações dos que pensam diferente de mim, não desvalorizo os aspectos de segurança ética e jurídica envolvidos, não ignoro o desgaste pessoal e profissional de eventuais processos de responsabilização. Ou seja, não desprezo o que se tornou embutido na denominada medicina defensiva. Entendo a angústia do colega que deseja algo como um laudo protetivo. Mas, a Bioética está aí justamente para evitar que dificuldades no âmbito da relação/conexão médico-paciente sejam equacionadas e resolvidas sem a representação da medicina. Há motivos a considerar na interioridade do paciente além da doença alinhados com a liberdade/autonomia e a dignidade do ser humano.

A Bioética da Beira do leito lança a questão: se os profissionais da saúde bem intencionados não conseguem resolver, suprir a vontade da pessoa e, no caso em questão, de familiares, porque é que uma autoridade – como um juiz, que creio está no etc… da Resolução acima citada- não afeita à medicina deve decidir pelo poder do seu martelo, um símbolo da justiça, que, em geral é acionado nas circunstâncias da medicina com premência de decisão, dificultando, inclusive o aconselhamento tecnocientífico de peritos? 

Como exercício de reflexão, figuro que uma imposição heteronômica (pleonasmo?) que contrarie a expressão da autonomia do paciente é como uma liminar judicial que autoriza a aplicação indesejada pelo paciente de procedimentos médicos/farmacêuticos e, quando houver mais tarde o que seria a apreciação do mérito, o fato já estaria consumado, sem chance de retorno à situação original.

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