Aspecto enigmático da beira do leito contemporânea é a dificuldade de valorização da Bioética pelos profissionais da saúde atuantes assistencialmente. Pouquíssimos se interessam em conhecer suas contribuições visando a comportamentos sobre a vida, a ciência e a saúde na beira do leito.
A medicina e as ciências da saúde de modo geral estão cada vez mais objetivas e empregam métodos diagnósticos, terapêuticos e preventivos que têm forma, podem ser vistos, palpados, ou seja, são meios de trabalho que existem de fato no plano físico – um comprimido de fármaco a ser ingerido, um fígado aumentado sentido na ponta dos dedos, uma prótese a implantar, um cateter a ser posicionado, uma imagem radiográfica reveladora de uma estrutura anormal.
Já o benefício, o não malefício e a autonomia são construções imaginadas – referência a Yuval Noah Harari (nascido em 1976)-, constituem realidades ditadas pelo poder humano da ficção – em seu sentido amplo-, tendo natureza abstrata, carente de uma forma reconhecível, não são vistos em cima de uma mesa de trabalho, não são palpados antes de aplicar, enfim, não “existem” de fato no tridimensional. Assim os princípios da Bioética referem-se a termos com significâncias nômades que, embora não saiam na foto, estão ali dando algum tipo de sustentação ao profissionalismo. Correspondem a símbolos, portanto não deixam de conter algo vago, não bem compreendido, e, assim, apresentam conotações além das realidades concretas. Nem sempre percebidos de modo concreto, os princípios como termos de simbolismo vão junto no pacote dos métodos tecnocientíficos, por exemplo, a convicção da beneficência de modo oculto no pensamento reducionista que um antibiograma é o meio para definir a escolha do antibiótico. A consciência dá percepção de construções imaginadas, em geral, quando, contrapontos acontecem, o inesperado, o confronto, o conflito passam a exigir uma ampliação cognitiva do passo-a-passo pragmático.
O sentido do benefício está, assim, embutido no anti-hipertensivo que regulariza os níveis tensionais, o sentido do não malefício no ajuste da dose de um fármaco em função da insuficiência renal, na hidratação que precede o uso de contraste iodado, o sentido da autonomia na verbalização simplista do sim ou do não.
O que dizer, então, sobre os conflitos da beira do leito que têm mobilizado a Bioética? O que existe de concreto costuma ser algum impedimento à rotina que desagrada. O que as partes envolvidas desejam é o destrave, não exatamente fazer grandes reflexões sobre recomendações com base no que um filósofo disse um dia e ou sobre a conveniência da preservação de determinada norma um dia imaginada e adotada. Deseja-se o que e não o porque. Algo como uma desconsideração pelo planejamento a longo prazo -referência a Zygmunt Bauman (1925-2017). De certo modo, Comitês de Bioética- os poucos existentes, aliás- funcionam atendendo às angústias de quem chama o corpo de bombeiros na hora do incêndio, todavia, eles não conseguem fazer entender o valor da vistoria preventiva, vale dizer, reuniões clínicas e resoluções com foco em aspectos de interesse da Bioética.
Aqueles que não se voltam para a Bioética e que, pois, não falam a linguagem da Bioética não revelam as habilidades que possam ter – creio que a maioria tenha- para emitir e receber seus significados. Na verdade, podem não se interessar – ou são impedidos- em função de uma rotina massacrante que dificulta chegar perto de coisas que não existem, que nunca viram, tocaram ou compraram. Entendem que seria perda de um tempo que é precioso para a sua missão de coletor-prescritor.
Bioética é um termo composto revestido de grande simbolismo na beira do leito, não é somente biologia para a qual bastaria compreender relações entre transmissores e funcionamento de órgãos, ela leva em conta ideias, imagens e fantasias. Precisamos continuar procurando amálgamas fortes que possam contribuir para as gerações jovens de profissionais da saúde unirem as diferenças complementares.