Entendo que o médico deve ter em mente seu dever com o direito do paciente à autonomia, considerar a voz ativa do “interessado” na tomada de decisão, como a construção de um processo de compartilhamento de racionalidades e emoções, valores e significados, informações e esclarecimentos, que se expressa por consentimentos- ou não- a orientações tecnocientíficas, provisórios ou definitivos, ou seja, uma ordenação de sucessivas concordâncias ou discordâncias do paciente, o sujeito do atendimento.
A continuidade do atendimento admite, assim, passagens por pedágios do consentimento, idealmente, desde o início da atenção do médico, algo que já se define como uma autorização abrangente ou, então, que vai acontecendo à medida da progressão dos cuidados. Situações de emergência ou rotineiras, doença aguda ou crônica, histórico de fidelidade na relação médico-paciente são fatores influentes no desenvolvimento das nuances do processo de consentimento pelo paciente.
É importante ressaltar que, ao contrário do que o noviciado profissional presume, a procura de atendimento médico pelo paciente não é sinônimo de autorização tácita à prática da medicina validada e beneficente para o caso. Como a imensa maioria dos pacientes dispõe-se a se submeter ao que o médico prescreve, forma-se uma natural impressão de superposição entre o desejo do paciente de ser atendido e de dar “carta branca”, reforçando que o consentimento é tão somente uma formalidade menor, ou mesmo uma perda de tempo face às necessidades de providências tecnocientíficas.
A mentalização que faço sobre a conscientização pelo médico pela obtenção do consentimento pari-passu ao atendimento, aproveitando os hábitos da era eletrônica, é imaginar o paciente (ou responsável) tocando no local da digitação feita pelo médico – solicitação de exame complementar, prescrição terapêutica, alta hospitalar- apondo sua identidade digital, chancelando uma autorização. Tudo se passaria como se não houvesse progressão da “tela” sem a providência do Sim eletrônico, evidentemente, apoiado por esclarecimentos em relação a objetivos, benefícios e adversidades.
A conotação de processo para a execução do direito à autonomia pelo consentimento livre e esclarecido guarda relação com o potencial de reconfiguração periódica do entendimento do paciente (e responsável) sobre a sua doença, o modo como está evoluindo e repensamentos estimulados por seus valores, algo como embates sucessivos entre o racional e a emoção tempo-dependentes. É do cotidiano que um paciente chegue no Pronto Socorro queixando-se de um sintoma altamente incomodativo e logo após o alívio deseja ir embora imediatamente, recusando-se a ficar em observação e a realizar exames esclarecedores. Já numa internação hospitalar, o consentimento para o ato operatório não inclui para alguma medida adicional evolutiva ou decorrente de um achado inesperado. Por isso, a ideia de consentimento à recomendação médica deve ser plural, livre, esclarecida, renovável e revogável.
Cabe a figura do rio, sempre o mesmo nome, o mesmo trajeto, mas nunca a mesma água. Numa internação causada por uma emergência, por exemplo, a arquitetura da tomada de decisão que culmina com consentimentos -ou não- pelo paciente é fortemente influenciada pelos sintomas que afligem, reações emocionais desencadeadas, preocupações com o prognóstico. Há, ainda a alta participação da angustiante abertura do leque de hipóteses diagnósticas e o subsequente fechamento para boas ou más notícias. Tudo isso sustenta noção que o consentimento deve ser entendido como um processo de sucessão de vontades jamais unidirecionais.