Neste 8 de março de 2015, o blog Bioamigo presta homenagem ao Dia Internacional da Mulher. A data origina-se num movimento realizado por mulheres na Russia, em 1917 e foi oficializada pela ONU, 60 anos depois.
Saliento uma representante do sexo feminino que, ao longo das últimas décadas, trabalhou para merecer o respeito da sociedade, a médica brasileira.
Eu vivi um tempo em que havia um abismo de confiança na doutora, em relação ao doutor. Especialmente, nas especialidades- na década de 60 do século passado o número delas era menor do que agora-, muitos manifestavam preconceitos sobre a capacidade profissional da mulher. À baixa confiança do paciente, associava-se a de uma parcela dos médicos.
Recém-formado, motivado pelo renome do professor-cirurgião palestrante fui assistir à palestra o “Novo Bisturi”. Sensibilizado por ser neto e filho de médica, conhecedor desde o útero da capacidade de uma médica conciliar desempenhos familiares e profissionais, saí decepcionado e indignado por ter ouvido de uma “autoridade” da Medicina que a agulha para a mão do cirurgião era na verdade um masculino, diferente da agulha de pregar botões. Felizmente, testemunhei ao longo da minha carreira o encolhimento deste clima hostil. Tal manifestação de ignorância e de desrespeito estava por conta do condicionamento social sistemático sobre a moralidade da mulher, que a ela incutia o compromisso com a abnegação a outros, submeter-se e obedecer, sintetizável nas “profissões” dona de casa e do lar.
Eu sou do tempo em que se aprendia que usando o substantivo masculino incluía a correspondência feminina. Ensinaram-se que o masculino era gênero não marcado, que admitia ambos os sexos, ao contrário do feminino, que era específico. Todos os gatos são pardos à noite, por exemplo. Mas, a bem da verdade, repetia-se frequentemente, senhoras e senhores, boa tarde! Atualmente, temos ouvido brasileiros e brasileiras e outros que tais referentes à equalização dos gêneros, o que me leva a uma dúvida: todos os gatos e todas as gatas são… Aí complicou… são pardos e pardas… Será?
O certo é que cada idioma tem suas regras gramaticais e sofrem revisões. E a “linguagem” da beira do leito, aquela que dá forma à relação médico-paciente, misto do deontológico com o ontológico, por mais universalidade que possa haver, é passível de mostrar peculiaridades associadas ao gênero do profissional de saúde. Nasce, assim, a tese que o médico foi um professor histórico da médica e agora, o discípulo- melhor a discípula- pode ter muito a ensinar ao mestre-homem.
Recorde-se que a dificuldade que as mulheres tinham em obter o diploma de Medicina foi a motivação para a criação da The Female Medical College of Pennsylvania, em 1846. Houve grandes dificuldades para proporcionar o treinamento necessário dominado pelos médicos.
Cerca de 170 anos depois, a mulher é maioria em inúmeras salas de aula das Faculdades de Medicina brasileiras. O aprendizado da Medicina ganha, assim, novas decodificações, permitindo suposições sobre novas leituras da Medicina para o ser médico, como uma pessoa que cuida de outra pessoa.
A Demografia Médica no Brasil, editada pelo CREMESP em 2013, http://www.cremesp.org.br/pdfs/DemografiaMedicaBrasilVol2.pdf evidencia o acréscimo percentual de médicas na razão inversa da faixa etária. À reboque deste crescente número de jovens médicas no Brasil, vai desaparecendo aquela ideia do paciente que um homem de branco no hospital identificava o médico e, uma mulher, a enfermeira- que é o profissional da Saúde –enquanto sentido de equipe como enfermagem- que, tradicionalmente, mais tempo passa prestando cuidados diretamente ao paciente internado.
Pelas transformações estatísticas, podemos então pensar que o nosso Código de Ética Médica, que diz que é vedado ao médico uma série de ilícitos éticos, teria de arrumar o texto nas próximas edições para uma redação é vedado ao médico e à médica…
A adaptação estaria ao gosto da chamada Ética Feminista. Vale a pena aproveitar a oportunidade do Dia Internacional da Mulher para conhecer um pouco dela.
Ela existe há mais de 20 anos com o objetivo de repensar entendimentos da Ética tradicional que poderiam representar depreciações e desvalorizações da experiência moral das mulheres. Integra o feminismo, que é um movimento multifacetado, e conta com filósofa Alison Jaggar que foi quem considerou haver uma visão de rebaixamento da mulher em 5 aspectos da Ética tradicional:
a) menor zelo com temas e interesses da mulher em relação aos do homem;
b) depreciação no chamado mundo privado, da condição de dona de casa, cuidadora dos filhos, dos enfermos e dos idosos;
c) consideração de inferioridade da maturidade moral das mulheres;
d) supervalorização dos traços culturalmente masculinos como autonomia, independência e intelecto;
e) favorecimento do raciocínio moral masculino que enfatiza regras, direitos, universalidade e imparcialidade sobre o feminino que enfatiza relações, responsabilidades, particularidades e parcialidades.
Para quem desejar se aprofundar no tema: http://plato.stanford.edu/entries/feminism-ethics/
Entendo que a Residência Médica é um espaço de alta contribuição para a equiparação de gêneros pretendida. Ela dá mesmas oportunidades àqueles que comungam-homens e mulheres- mesmo desejo pelo aperfeiçoamento da graduação e mergulho numa especialidade.
A Bioética da Beira do leito, ao reconhecer a essencialidade da Residência Médica, interessa-se pela apreciação de realidades de comportamentos que possam distinguir médico e médica. Há o objetivo pedagógico de aproveitar a beira do leito como sala de aula interativa e reflexiva sobre a moralidade dos comportamentos. Pegando carona com Michel Foucault (1926-1984), sobre o comportamento real dos indivíduos em relação a regras e a valores prescritos por um código moral proposto para as boas práticas da beira do leito.
O passar dos anos tem demonstrado que não há razão para distinguir os gêneros por aspectos de conhecimento técnico-científico e de habilidades de aplicação de métodos. Evidente que há mais densidade de médicos e de médicas em especialidades e em áreas de atenção, muito embora alumas diferenças pareçam estar em declínio. Digno de registro é que componentes da minoria não se associam a menor qualidade nos cuidados com a saúde em relação à maioria.
A Bioética da Beira do leito, sensível a movimentos para o correto posicionamento à beira do leito da apreciação e do valor da médica na interface com o paciente, mostra-se assim atenta às reinvidicações por “equiparação” pela Ética feminista, no campo dos cuidados com a saúde dos pacientes.
Percebe-se o quanto a médica tem a oferecer bom exemplo para o humanismo. Não há dúvida que ela transita com propriedade sobre as subjetividades que acompanham as objetividades da Medicina. Neste contexto, a médica pode mostrar caminhos ao médico para que ele fique mais à vontade para conciliar a “dureza” da ciência com a expressão dos sentimentos.
A relação médica-paciente com o “toque maternal”, com mais atenção ao pessoal e ao social pode mostrar vantagens sobre a relação médico-paciente “masculina”, mais objetiva e mais emocionalmente neutra. Inclusive, auxiliando a mulher-paciente a pensar sobre o que muitos chamam de ideologia patriarcal presente no sistema de saúde, que inclui algumas das críticas formuladas pelas feministas acerca dos direitos da mulher.
Mais médicas, ademais, carregam a potencialidade de contribuição para a redução de afirmações repetidas que as queixas das mulheres são consideradas mais insignificantes do que as mesmas de um homem, que elas são atribuídas em grande parte a aspectos emocionais e que, por isso, recebem maior número de prescrição de tranquilizantes. E que, mesmo quando os sintomas relatados pela mulher são entendidos como sérios, eles demandam condutas menos agressivas.
Parabéns à médicas no Dia Internacional da Mulher! Mulher-médica, ganho para a Ética! Mulher-médica, vantagem para a excelência da beira do leito!
Uma resposta
Agradeço a bela homenagem do Blog Bioamigo por ocasião do Dia Internacional da Mulher em nome da médica brasileira. Venho batalhando desde o ano de minha formatura em 1974, participando de agremiações associativas em prol da Médica em nível nacional e internacional. Tais associações, como a Associação Brasileira de Médicas (ABM), Aliança Panamericana de Médicas(PAMWA) e a “Medical Women’s International Association” (MWIA), esta última com assento permanente nas Nações Unidas(ONU). Todas estas associações norteiam seu trabalho lutando contra o preconceito à Médica, pelo empoderamento das mulheres, por ações que minimizem a violência contra a mulher e a criança e ainda principalmente pela melhoria da saúde da mulher e da criança, salientando as diferenças e particularidades de gênero nas diversas patologias. Acredito que houve muitas melhorias desde então. Como bem mostra o Dr Max Grimberg neste excelente artigo, houve um aumento considerável de médicas nestes últimos 40 anos, sendo que médicas jovens com menos de 29 anos superam atualmente o número de médicos formados, mostrando uma tendência clara à feminilização da Medicina. Eu vou um pouco mais longe ao ver o aumento consideravel do número de médicas em especialidades consideradas exclusivas do sexo masculino, como as diversas especialidades em Cirurgia. Entre estas estão a cirurgia plástica, cirurgia cardíaca, cirurgia pediátrica e ortopedia, com aumento também de especialistas em cirurgia de mão. Os tempos são bem diferentes da época da minha formatura na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, época na qual apenas duas médicas optamos pela Residência em Cirurgia Geral. Época onde não havia banheiros separados no Pronto Socorro do Hospital das Clínicas, devendo compartilhá-los com nossos colegas médicos, época onde não havia dormitório feminino no 9o. andar do prédio central, na clínica cirúrgica e no prédio da ortopedia. Esses tempos passaram. Podemos agora afirmar com orgulho que as conquistas foram de todas nós e que só com muito trabalho e dedicação respeitando os princípios da ética e da bioética podemos valorizar a condição da médica. Muitas de nós nos tornamos Professoras de Medicina e educamos uma nova geração de médicos e médicas que apreenderam a valorizar profissionais de ambos os sexos. É uma satisfação imensa sentir a admiração e carinho de nossas alunas e alunos e assistir ao seu crescimento na prática Médica. Finalizo com uma frase de Simone de Beauvoir, de 1972. Não existem qualidades, valores, modos de vida especificamente femininos. Não se trata de nos afirmarmos como mulheres, mas de nos tornarmos seres humanos em sua integridade. Parabéns às Médicas e Feliz semana Internacional da Mulher!