É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência é o Art. 1º do Código de Ética Médica vigente. Destaco a virtude da prudência, que é a precaução de selecionar métodos com melhores possibilidades de fazer o bem no processo de tomada de decisão para atender às necessidades de saúde do paciente. Daí, a apreciação do risco de provocar males no uso da Medicina inclui-se neste fundamento ético do profissionalismo médico – e dos profissionais de saúde de modo geral.
Considerando que a prudência é conselheira da moralidade do médico, fazer o bem e evitar o mal é tradição hipocrática do raciocínio clínico que exige conveniente distância de radicalismos sustentados quer por uma visão de Medicina como uma religião (dogmática), quer pela condição de refém da própria opinião (intolerante), quer por evidências cientificas circunstancialmente em oposição ao humanismo (centrismo científico).
A relação médico-paciente contemporânea virtuosa e moral admite a inobservância da prudência como erro profissional, pois caracteriza desatenção com a escolha dos meios adequados para a obtenção do melhor prognóstico a respeito, quer de um sintoma, quer de uma síndrome, quer de uma doença. Neste contexto, a consideração da futilidade terapêutica está também abrigada na disposição pela prudência alavancada pelo humanismo.
Por mais que possamos nos comportar sob o rigor da prudência, contudo, é inevitável a possibilidade da coincidência de eventos opostos, algo em analogia com o ensinamento da Física quântica que é possível a coexistência de duas situações diferentes e simultâneas. Situações clínicas contraditórias acontecem com frequência na beira do leito, o benefício almejado e adversidade não evitada. As “moléculas” dos métodos aplicados exercem a função prevista como partícula agente da prudência reagindo no órgão alvo e, ao mesmo tempo, comportam-se em ondas imprudentes que encontram e interagem com receptores dissociados da intenção do benefício. A velha iatrogenia sob roupagem da Bioética.
É tema que se inclui, outrossim, no contexto da transdisciplinaridade, a conjugação da complexidade (desdobramento de efeitos por mesmo método), diferentes níveis de realidade (sucesso para as expectativas do médico e insucesso para as expectativas do paciente, o que não é exatamente incoerente numa relação profissional-leigo) e lógica do terceiro incluído -não seria contraditório haver um tipo de identidade entre (A) -um bem- e (não-A) – um mal- como uma unidade (A e não-A ao mesmo tempo), por exemplo, a sobrevivência por uma amputação de membro. Estamos tão acostumados com habitualidade do efeito colateral que nos apercebemos que podemos estar sub-dialogando com a prudência.
É notório que quem passa a ter um pensamento condicionado pelos princípios da Bioética fica predisposto ao entendimentos do tipo: Prudência na beira do leito é cautela do médico em cortar fluxos de devir ligados aos processos fisiopatológicos e em prevenir gatilhos de devir induzidos pelos métodos que foram aplicados visando ao benefício. Facilita, assim, depreender que mesmo um máximo possível de segurança cogitado num determinado processo de tomada de decisão em Medicina (articulado com o chavão da Ciência não exata) não vacina contra adversidades, o que compromete qualquer antevisão de solidez pétrea em conceitos e capacidades tecnocientíficas quando atuantes no chamado mundo real da beira do leito.
Aprende-se desde cedo na formação do médico que é inevitável a ocorrência de fluxos indesejados dissolvendo o pré-estabelecido, inclusive com chance de o malefício suplantar o benefício, ou seja, uma subversão da hierarquia pretendida (máximo benefício com mínima adversidade) que representa o conceito moderno de iatrogenia. Aliás, é conceito que o futuro médico já traz consigo e pretende que o profissional futuro reverta esta observação do leigo pré-universitário.
Desta forma, o consentimento livre do paciente por mais que possa se manifestar sob perfeito esclarecimento do médico, é anuência que não pode ignorar o reconhecimento de imprevisibilidades, vale dizer, que se dá no máximo de esgotamento da consciência sobre os devires determinados pelos métodos a serem aplicados. Deve ficar clara a expressão de individualidade nas possíveis passagens da solidez cogitada da recomendação para a liquefação imprevista perante as realidades biológicas daquele paciente. Diríamos que o impacto de um fármaco, por exemplo, corresponde a uma onda que, não somente atinge a mosca do alvo, como também, respinga em círculos adjacentes. Muito embora seja o mesmo fármaco na mesma indicação terapêutica, é outra água, qual o rio de mesmo nome e trajeto, sugerindo que só persiste o que muda, vale dizer, benefícios exigem ajustes. Esclarecer ao paciente o quantum satis é uma arte que, atualmente, faz parte da responsabilidade com a informação, nada simples.
Vem portanto, à mente, a figura que a escolha do método beneficente sustentado pela prudência no mais alto nível de cogitação, por mais que possa, portanto, vir a ser compreendida pelo paciente como um ativo sólido na mão do médico para alcançar o objetivo terapêutico, carrega o potencial de se liquefazer pelos dedos e pingar sobre demais componentes biológicos. Evidentemente, há as liquefações cujas revelações de frequência no processo de consentimento são habituais, mas o que é essencial numa eventual interpretação judicante de justificativas da acusação de imprudência do médico, são as que não foram previstas. A pesquisa clínica interessa-se pela realidade das adversidades, o que não infrequente torna-se a conclusão prevalente.
Estamos nos vestíbulos de uma Medicina personalizada, de precisão, com sustentação no genoma, apoiada por big data e inteligência cognitiva. Podemos presumir que o decorrente devir é a obtenção de maior nível de prudência no processo de tomada de decisão. É de se esperar que haja menores taxas de adversidades por mais controle de previsibilidades. A pergunta é se haverá menos imprevisibilidades, ou seja, o quanto a ampliação artificial da capacidade cognitiva poderá funcionar como a velha e sonhada bola de cristal, hoje opaca.
Os defensores da máxima tecnologia em Medicina argumentam que o aceleradíssimo progresso da Medicina excede a capacidade humana de dominar os métodos com a rapidez necessária e, assim, por mais que possamos pretender apreender a sua solidez com mão firme, iremos, inevitavelmente, observar liquefações relevantes escorrendo pelos dedos, vale dizer, uma forma não será duradoura. Algo tão paradoxal como a visão de uma Medicina que excede a capacidade humana (do médico) de ser o prevalente agente beneficiário de humanos (pacientes). Alô Bioética!
Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura é dito popular que se atrela à prudência pela preocupação com as consequências. Persistir tendo nas mãos um método de atuação, nem sempre seguro se o melhor caminho é avançar ou recuar pode ser bom ou mau. Por isso, a metáfora do líquido e da fluidez articulada com a velocidade de transformações na Medicina contemporânea é notável estímulo para conhecermos mais profundamente na obra de Zygmunt Bauman (1925-2017) o que possa haver de “bons fluidos” na Modernidade Líquida para a sustentação transdisciplinar contemporânea da Bioética, pelo grande respeito com suas origens: “… O que lhes peço é que pensem a bioética como uma nova ética científica que combina a humildade, responsabilidade e competência numa perspectiva interdisciplinar e intercultural e que potencializa o sentido de humanidade…” (Van Rensselaer Potter, 1911-2001).