Todo atendimento às necessidades de saúde de um paciente tem suas peculiaridades. Elas estão associadas, essencialmente, ao modo com que se dão as interações entre cinco componentes atuantes na beira do leito: Medicina (ciências da saúde), médico (profissional da saúde), paciente/familiar, instituição de saúde e sistema de saúde (Pentágono da Beira do leito).
As influências recíprocas exigem um pluralismo epistemológico à beira do leito. Muitos saberes podem ser convocados para sustentar as inter-relações, nexos e vínculos tanto entre campos do conhecimento das ciências da saúde – Medicina, Biologia, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Nutrição, Terapia Ocupacional, Odontologia-, quanto além delas – Ética, Direito, Filosofia, Comunicação, Economia, Teologia, Matemática, Antropologia, Engenharia, Literatura, etc…
Assim, podemos figurar que a beira do leito precisa ajustar vários recortes de saber que estão organizados em disciplinas para melhor desenvolvimento e ensino segundo o rigor de regras e de métodos que lhes são mais adequados. Mas, a fragmentação do saber ao mesmo tempo que concorre para a expansão, a reflexão teórica e o aprendizado, prejudica a sua aplicação em nível social, a ênfase na resolução de problemas. Por isso, a beira do leito dos seres humanos que cuidam de seres humanos envolvendo circunstâncias biológicas e aspectos sócio-econômicos-emocionais com ampla diversificação caso a caso não se sustenta com única disciplina, referida, por exemplo a um CID principal. Por mais que seja uma beira do leito de um paciente que está sendo cuidado por uma doença do coração, o ser humano abriga outros órgãos exigentes de atenção pelas ciências da saúde e, inserido na sociedade, demanda aspectos da cidadania, vale dizer um intercâmbio de um conjunto variável de recortes do conhecimento científico e não científico.
A beira do leito do século XXI está longe do conhecimento baseado na tradição que vigorou até o século XVII, obtido por meio da contemplação, do êxtase e da revelação de caráter divino, que se perpetuava numa oralidade passada de mestre para discípulo bem como supera o racionalismo (matéria e espírito) que se sustenta em pensamentos ligados à razão discursiva, como faculdade cognitiva maior, conforme influência aristotélica. De fato, a partir do século passado, especialmente, o empirismo – base na experiência e que afasta o valor de apreciações inatas sobre o que é sensível ao ser humano- domina. Uma das tribunas é a Medicina baseada em evidências que desvaloriza conhecimentos não obtidos de modo sistematizado, colocando-lhes a etiqueta Achologia, um termo exagerado, pois inclui a vivência inquestionável de profissionais.
A beira do leito contemporânea ao requerer integração entre as ciências e as humanidades admite a convivência atualizada do empirismo – representado pelas diretrizes clínicas, por exemplo-, com o racionalismo – pensamentos inteligentes não necessariamente reprodutíveis em experimentos, por exemplo- e com a tradição – o misticismo de cada um, por exemplo -, cada relação médico-paciente tendo seu nível de combinação.
Nesta religação em que pitadas de ceticismo, reducionismo, criticismo, mecanicismo, materialismo podem exercer influências, as disciplinas têm sido direcionadas para a convivência em serviço, o que resultou numa inclusão de prefixos ao termo disciplinaridade. Num primeiro momento, deu-se a multidisciplinaridade, no âmbito do ensino pela inclusão de um bloco com várias disciplinas num currículo, cada qual com seus objetivos isolados e sem cooperação e, no âmbito de trabalho, a pluridisciplinaridade com a justaposição de áreas do conhecimento próximas com troca de informações que não é profunda e não provoca modificações essenciais em cada disciplina eventualmente envolvida. Funciona como monólogos justapostos (colírio prescrito pelo Oftalmologista, pomada prescrita pelo Dermatologista). A seguir, uma visão de contraposição à hiper-especialização favoreceu a realização de intercâmbios entre as disciplinas, a interdisciplinaridade, cooperação com coordenação, uma tendência à reunião das ilhas do saber num arquipélago compartilhando conceitos, dialogando e produzindo novos saberes.
Contudo, a condição humana é plural e complexa, suscita mais de um nível de realidade, vários níveis de percepção. Na beira do leito de nossos dias não cabem o formalismo excessivo, a rigidez de definições e o excesso de objetividade com exclusão do sujeito, de modo que o oposto de uma verdade profunda pode ser outra verdade profunda, ou seja, verdades devem ser configuradas como conhecimentos provisórios e dinâmicos. Desta maneira, a lógica clássica do terceiro excluído (A difere de não A e inexiste algo ao mesmo tempo A e não A) deu lugar à noção de possibilidade de um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A, inspirado pelos estudos da física quântica, sugerindo que opostos podem ser complementares. Por tudo isso, nasceu a concepção da transdisciplinaridade, que retira fronteiras sólidas entre as disciplinas, coloca o conhecimento entre e além das mesmas, objetivando uma unidade do conhecimento que dê melhor compreensão da complexidade pela tolerância ao desconhecido, ao imprevisível e ao inesperado. Entendemos que na prática, a beira do leito admite uma interdisciplinaridade com tendência aà multidisciplinaridade e uma interdisciplinaridade com tendência à transdisciplinaridade.
A Bioética da Beira do leito, particularmente em sua missão de atuar em conflitos no âmbito do Pentágono da Beira do leito pretendendo uma organização de trabalho polivalente para apoio à resolução concreta da questão e/ou à ampliação dos pontos de vista passíveis de serem considerados perante as peculiaridades, tem a inter(trans)disciplinaridade como um valor maior.