Há 200 anos, René-Théophile-Hyacinthe Laennec (1781-1826) inventou o estetoscópio e o médico passou a melhor auscultar ruídos formados no interior do corpo humano.
Hoje, outros tipos de murmúrios, atritos e estertores do paciente precisam ser bem ouvidos pelo médico representando palavras da auto-determinação. É contexto em que a quarentona Bioética funciona como um estetoscópio facilitador.
Imagino o médico com um estetoscópio da Bioética pendurado no pescoço de fácil aposição na mente do paciente para auscultar a vulnerabilidade do ser humano “além e diante da técnico-ciência”.
O que médico recém formado vier a assim conhecer lhe soará como um desafio profissional. Ele perceberá realidades não escritas nos livros que ensinam Medicina, mas que é preciso aprender. A difusão desta necessidade para a prática ética contemporânea da Medicina tem sido um trabalho de formiguinha da Bioética. A dificuldade maior é perfurar notórias impermeabilizações à empatia determinadas pela exaltação com o tecnicismo.
A classificação da ausculta pelo estetoscópio de Bioética é infinita. Todos os dias haverá um novo som. Uma energia acústica capaz de movimentar algum tipo de confronto com o saber da Medicina. Uma vibração que pode ser suficiente para tirar o médico da zona de conforto, que se é que ela existe- entendo que existe, mas às custas de um grande investimento em sabedoria de vida profissional.
As vacinas do calendário da formação profissional do médico protegem contra próprios micróbios de imprudência e de negligência. A constituição de imunidades a conflitos da beira do leito depende do defrontamento a agentes externos ao médico que habitam a beira do leito, onde sempre haverá mais uma exposição inédita para cada médico atuante.
Por isso, a ideia que a Bioética da Beira do leito deve ser também uma Bioética de todos nós em que o estetoscópio da Bioética é instrumento de valor, qual escoteiro, sempre alerta!
Por certas razões, muitos ruídos da mente do paciente passíveis de gerar conflitos permanecem silenciosos ao exterior. O médico faz o atendimento com correção profissional, o paciente “tem alta” sem nenhuma intercorrência de natureza humana, aparentemente satisfeito com os resultados clínicos e turbilhões de contraposições na mente do paciente permanecem inaudíveis.
A maioria destes ruídos não diz respeito aos temas sintetizados no consentimento em si, ela é de natureza íntima, pessoal, familiar, social, “entendidas como nada a ver com o médico”. Não obstante, uma parte poderia ser objeto da relação médico-paciente. Depende muito de como esta conexão humana é estabelecida pelas partes.
Tradicionalmente, o médico não aprecia envolver-se com o que depreende que não influencia o prognóstico do seu trabalho. Contudo, há turbilhões não percebidos que habitam aquelas terríveis zonas cinzentas fronteiriças, um nem pra cá, nem pra lá que tem a diabólica propensão para transpor os limites inesperadamente, impactar na relação médico-paciente e causar reais conflitos. O então silêncio perde os freios, passa a gritar e a assustar. Fica a sensação tardia que teria sido melhor se o estetoscópio da Bioética tivesse auscultado enquanto “turbilhão silente”.
É um desafio pouco treinado pelo médico. A Bioética da Beira do leito (de todos nós) coloca no cenário a oportunidade para aprender a “auscultar o silêncio”, decodificá-lo em potenciais de matéria prima de conflitos frente a desdobramentos evolutivos e trabalhar prevenções por uma pró-atividade de quebra do silêncio por atenção ao diálogo.
A Bioética da Beira do leito (de todos nós) valoriza a ausculta adulta e realista dos sons da auto-determinação do paciente por mais silenciosos que se façam. Por isso, a recomendação do uso de estetoscópio da Bioética que amplifica certos pensamentos inibidos e desmistifica que estar calado significa sempre consentimento na relação médico-paciente tão fragmentada da atualidade.