O bioamigo conhece alguém que foi voz discordante e passou à História como expressão de concordância? Pois é, aconteceu com a ativista inglesa Victoria Gillick (nascida em 1946). Ela tornou-se epônimo de competência antecipada do adolescente para assuntos da sua saúde.
O governo inglês (House of Lords) provocado por uma campanha de oposição de Gillick reconheceu que o menor de 16 anos que demonstre maturidade e inteligência pode dar consentimento para aplicações médicas de seu próprio interesse, sem necessidade da participação dos pais. Houve, assim, a desconsideração do que se chama de “pátrio poder” para fins do consentimento e um posicionamento superior do “melhor interesse”.
O “Gillick competent” nasceu da anticoncepção. Como assim? Nesta narrativa de contraposições, a Sra Gillick, na década de 80, reagiu publicamente a uma determinação governamental autorizando a prescrição de anticoncepcional para menor de 16 anos sem o consentimento dos pais. Ela alegou incentivo à prática de sexo por menores e exigiu a imediata revogação do “salvo conduto”. Não obteve êxito. E mais, o conceito ampliou-se e tornou-se um direito do menor de idade além do uso de anticoncepcional. Para o usufruto, a exigência legal é que o adolescente seja um competente Gillick (inteligente capaz de desenvolver pensamentos concretos para o entendimento do que o tratamento envolve). O tiro que saiu pela culatra para Gillick não deixou de atingir certos segmentos da população e gerar polêmicas. Mas é problema dos ingleses.
O que nos interessa é que a expressão competente Gillick cresceu no âmbito da Bioética pela conexão com dois termos: paternalismo de transição e assimetria de consentimento. Eles comungam o significado que o adolescente não é um adulto, mas deseja ter comportamentos de adulto e para alguns, não para todos, já pode ter a devida competência, num processo dinâmico de ponte criança-adulto para aquisição de capacidade para a auto governança.
Estamos no Brasil. Na letra do Código Civil brasileiro a menoridade cessa aos 18 anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. Às 23h59 do dia que antecede o aniversário marcante, o jovem é menor de idade. Às 0h01, ele é agora um maior de idade. Evidentemente, nada aconteceu na sua competência para a vida nestes dois minutos decisivos, além da aquisição de um novo carimbo social. Um efeito teórico é a desnecessidade de obter consentimento dos pais para encaminhar suas questões de saúde. Ok! Mas, falemos baixo, pois certas mães por aí… Ademais, já ouvimos muito de pais “como assim, ele é meu dependente no convênio“, “mas sou eu quem paga a consulta e a compra do medicamento”.
Entendimentos familiares à parte, o certo é que o Estatuto da Criança e do Adolescente marca a adolescência na faixa entre 12 e 18 anos. Subentende-se, pois, que é faixa etária onde a criança (até 12 anos) vai adquirindo progressiva maturidade na direção da vida adulta (após 18 anos). Uma das competências a serem desenvolvidas nesta rota é a do equilíbrio entre as várias combinações de eu quero/eu posso/eu devo. Pela competência Gillick, alguns anos antes dos 18 anos o adolescente brasileiro poderia (exercício mental tão-somente) ter o desejo de tomar uma decisão autônoma sobre suas necessidades de saúde. Se deveria? Bom, aqui cabe uma bela discussão com vários ingredientes abrangendo entre os extremos de total concordância e de plena discordância, com adolescente, pais e médico, cada um, provendo suas convicções acerca das combinações, possibilidades e impossibilidades, na tríade eu quero/eu posso/eu devo.
O conceito de paternalismo de transição admite que as várias faces das responsabilidades para a vida adulta civil dos filhos vão sendo gradativamente aceitas pelos pais, à medida do entendimento que houve o específico amadurecimento. Os seus defensores entendem que a liberação progressiva e seletiva preserva o enfrentamento de certas complexidades e respeita a notória diversidade com que os adolescentes são capazes de realizar o próprio amadurecimento.
De fato, na escala de tempo que permite ao adolescente vivenciar as experiências e ir moldando o seu modo de ser, portando e revelando caráter, temperamento e personalidade, há os mais acelerados e há os menos acelerados na rota da capacidade. Certamente, na área médica, ele poderá ser provocado para decisões mais simples sobre concordâncias entre eu quero/eu posso/eu devo e para mais complexas, onde cada elemento poderá ter sentidos distintos para adolescente, pais e médico. Mover-se desacompanhado para elucidar um determinado sintoma pode ser justificável num adolescente com 15 anos de idade, por exemplo, contudo o desdobramento terapêutico pelo diagnóstico pode, especialmente quando houver maior gravidade do prognóstico, modificar a relação autonomia/paternalismo inicial.
Neste contexto de promover a independência do adolescente e, ao mesmo tempo, protegê-lo contra incapacidades, a estruturação inglesa da competência Gillick faz uma divisão entre consentir e não consentir. Desde que amadurecido suficientemente, ou seja, competente para compreender, deliberar e comunicar decisões, o adolescente menor de idade pode consentir “numa boa”. Todavia, caso ele não dê o consentimento requerido pelo médico há a possibilidade de sua decisão vir a ser contestada e transferida para uma “instância superior”. O critério é que um entendimento “adulto” não deveria haver recusa quando ela coloca o próprio bem estar em risco. Autonomia, pero no mucho.
O racional é que há uma diferença de maturidade para compreender os passos da recomendação médica, os benefícios atuais e futuros e o grau de segurança, algo ligado à confiança e para assumir uma divergência. Acresce-se, pois, um conceito de assimetria de competência articulado com o paternalismo de transição isto pode isto não pode, isto deve isto não deve.
É do cotidiano dilemas no atendimento médico com uso do direito à autonomia pelo adolescente amadurecido. Os hebiatras conhecem bem os meandros e desenvolvem caminhos conciliadores nesta fase nem consulta pediátrica(interlocução familiar) nem de adulto.
Qualquer decisão individual no mundo real da prática médica num Brasil multicultural e pluriétnico deve considerar perspectivas de desenvolução da adolescência e seus aspectos ligados à família, às relações sociais, às condições de saúde e ao contexto sociocultural. Distinguir entre adolescência inicial (10 a 13 anos), adolescência média (14 a 16 anos) e adolescência tardia (mais de 17 anos) pode ser facilitador para a caracterização de assimetria na percepção do conjunto de valores. A tendência brasileira conforme o Ministério da Saúde é reconhecer que os adolescentes são capazes de tomar decisões de forma responsável e merecedores da confidencialidade.
A Bioética da Beira do leito apoia o fortalecimento da autonomia do adolescente no sentido de se identificar, fazer escolhas e assumir responsabilidades. Ela distingue duas situações em relação à promoção de uma autoria decisória. Na primeira, a Bioética da Beira do leito enxerga o adolescente hierarquizando o sigilo e, assim, desejando uma interlocução tão-somente com o médico, afastada da interferência de “obrigação” paterna, ilustrada por questões ligadas a tabus da sexualidade.
Na segunda, a Bioética da Beira do leito valoriza o processo decisório do paternalismo fraco que se propõe a insistir sem coerção ante objeções, a compreender as mesmas, a esgotar os esclarecimentos sobre perspectivas e a cooperar para a real liberdade do cenário decisório. Participar ativamente dos ordenamentos junto com as autoridades adultas do médico e dos pais, ver-se inserido nos movimentos e contra movimentos a respeito da situação clínica e da sua avaliação de competência, conhecer alternativas, reforçar ou reconsiderar os próprios valores e interesses, acomodar as volatilidades, para depois vir a se afirmar “com nível de discernimento adulto” num momento deliberativo final (exercitar o direito à autonomia), contribui com notável valor pedagógico para a progressão de competência do adolescente na tomada de decisão sobre suas necessidades de saúde. É aspecto essencial do paternalismo de transição esta passagem gradativa de suficiência da voz de consulta para voz de autoridade, ou seja, gradual redução pela prática das assimetrias de consentimento.
Para aqueles que hierarquizam de modo indiscutível a superproteção ao adolescente, fica o alerta: lembrem-se da contravolta Gillick!