A palavra do ano de 2016 indicada por Oxford Dictionaries é Pós-verdade (Post-truth). O adjetivo foi utilizado especialmente no contexto social e político -Brexit e eleição nos EUA sustentaram grande parte do aumento de 2000% no uso em 2016 em relação a 2015.
Pós-verdade tem por definição circunstância em que a opinião pública é mais atraída pela emoção e por opiniões pessoais do que pelos fatos objetivos.
O prefixo pós no caso representa pertencente a uma época em que o conceito- a verdade nesta circunstância- perdeu importância ou relevância, ou seja, uma expansão do significado de pós para além do clássico após uma certa situação ou evento, como pós-graduação.
O termo interessa à Bioética da Beira do leito. Pois ele cabe em lacunas e em vielas da Medicina, em situações onde os métodos beneficentes não podem cumprir seu papel de favorecer o prognóstico, ou o fazem de maneira aquém do desejado pelo paciente, ou na intensidade e/ou no tempo. Em decorrência, anima-se um movimento na direção de um emocional sedutor, a promessa de utilidade, o voto de reversor da morbidade, “firmemente” fincado numa nuvem carregada de convencimentos que logo tem grande chance de se desfazer na chuva que lava o superficial da esperança porque distanciada da obtenção e do respeito a evidências científicas. Recentemente, a fosfoetanolamina suscitou discussões apaixonadas entre “verdades” de cientistas e “verdades” de usuários que levaram a uma busca da verdade sem aspas na pesquisa clínica, como está ocorrendo no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).
O contexto do termo pós-verdade aproxima-o de enganação, toca a ilusão e desemboca na mentira. Mas, como nos ensinou Niels Henrick David Bohr (1885-1962) o oposto de uma verdade profunda pode ser outra verdade profunda, certamente ninguém ignora como a teoria quântica revolucionou a física.
Pode o médico mentir, ou, utilizando o termo do ano, aplicar pós-verdade, substituindo a objetividade técnico-científica por personalismos direcionados ao agrado do paciente? O Código de Ética Médica vigente sinaliza que há situações que admitiriam um agrado -ou não desagrado-, em que palavras danosas ao emocional do momento poderiam ser omitidas da comunicação: Art. 34. É vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.
A beira do leito convive diariamente com informações e esclarecimentos omitidos ou mentidos pelo médico que, talvez, não se enquadrem na ressalva ética. Parte poderá ser classificada como pós-verdade, principalmente quando ligada a uma presunção de poder acima do razoável pelo estado da arte, num ponto acima do que possa ser admitido pelo narcisismo benigno -acreditar na sua imagem profissional.
Atrair confiança, incutir otimismo, desconstruir derrotismo são reconhecidas funções de humanismo do médico perante as vulnerabilidades emocionais determinadas pelas doenças, pelos desconfortos dos sintomas, pelas restrições à qualidade de vida, pelas sensações que a vida se esvai.
Evidentemente, a beira do leito entraria em colapso se tornada um palco de mentiras. Mas, como o Código de Ética Médica sinaliza, há verdades que não são bem-vindas. Há uma fronteira de delimitação tão complexa quanto sombria entre a informação falsa de má-fé que se associa com conflitos de interesse material do médico- passíveis de manchetes como A máfia das próteses- e a de boa-fé que se associa a interesse no (não) conflito emocional do paciente- passíveis de apenas um nota de rodapé.
Percebe-se, pois, que a ética admite uma escala de honestidade na comunicação entre os extremos de verdade total e ausência de verdade. O valor da palavra não está atrelado ao tudo ou nada, o aspecto humano da Medicina permite considerar uma analogia ao pós-verdade, num sentido mais estrito, em que a objetividade do que “não se deseja ouvir” é deslocada para uma adaptação de caso pensado para satisfazer o que “se deseja ouvir”.
O canto da sereia da inverdade “que agrada” é ouvido na beira do leito. Ouvido pelo médico e que agrada ao paciente. Pode zerar a conta ou vir a ser cobrada com juros depois. Vivemos uma época em que a (des)informação via internet difunde facilmente mentiras da ciência, assim denomináveis até com exagero porque não comprovadas, que cada vez mais são captadas com fé (visão de já lhe ter acontecido). Assim, elas são transformadas em verdades de esperanças de mais felicidade e de menos desconforto, exigentes da disponibilidade de aplicação, apesar das vozes em contrário relegadas à expressão de desesperança. Por isso, a beira do leito passa a ter conotação semelhante ao do palanque político em termos de pós-verdade. Ninguém exige o número de CRM do Dr. Google- atestado de ter tido formação no que expressa- até porque a dispensa favorece torná-lo mensageiro dos sonhos, ficção da tranquilidade por permitir que se rasgue a mensagem que desagrada e retenha a pretendida. Quem não gostaria?
A Bioética da Beira do leito, porque se preocupa com a manutenção da Medicina baseada em evidências na linha mestra do exercício profissional ético, estimula discussões sobre ajustes possíveis entre saber técnico-científico validado em Medicina e as realidades da condição humana em reação a desejos, preferências, valores e objetivos a respeito da (falta) saúde.