Insisto. É importante para a excelência da beira do leito. Vale repercutir a considerada baixa iniciativa dos médicos brasileiros- não diferente de outros países- de buscar apoio num Comité de Bioética. Mais precisamente, em situações de crise na beira do leito.
É notório que a maioria dos médicos entende que faz parte da sua responsabilidade lidar com a plenitude das peculiaridades éticas do atendimento às necessidades de saúde do paciente e que “terceiros” não seriam capazes de compreender a plena composição técnico-científica-humana, assim prejudicando a conveniência de sugestões. Por outro lado, há a minoria que faz uma leitura distinta, que tem consciência que nem sempre é possível alcançar a real plenitude em cada caso e, por isso, faz bem-vinda uma ampliação de pensamentos sobre perspectivas pela expertise de “terceiros”. Ele não conta, todavia, com muitos Comités de Bioética no Brasil, até porque forma-se um círculo vicioso em função do baixo interesse.
Cada médico sente-se capaz de manejar o técnico-científico- objetivo explícito maior-, quando sente necessidade, recorre à literatura, atitude cada vez mais facilitada pela internet e, pode ainda solicitar uma opinião pontual a um colega. Tratando-se de um Serviço, tudo isso fica ainda mais organizado. A rotina parece deixar as atitudes arrumadas e, a prática os problemas incomuns com as mesmas são estatisticamente reduzidos, de modo que um Comité de Bioética ou alguém de confiança em assunto ético soa como de utilidade restrita. É visto como algo remoto, à disposição para ser acionado em eventualidades inusitadas e estressantes.
Dentro desta realidade com a cara da beira do leito tão dinâmica quanto habitualmente suficiente, quais estratégias deveriam ser adotadas para fortalecer a conexão humana médico-paciente com preceitos da Bioética, sem que proporcionem a indesejável sensação de violência profissional ao médico, de interferência na sua autonomia. Como ser visto como bioamigo e não como biochato?
A Bioética da Beira do leito apregoa que a Bioética é de todos nós, ou, invertendo, é de nós todos que estamos envolvidos num determinado atendimento. Pratica-se muito da Bioética sem a consciência do substrato. Justifica-se porque a Bioética não deixa de ser uma reação a abusos, um clamor pelo bom uso e, usando bem a Medicina, lá estão o benefício, a segurança, o diálogo com o paciente, a responsabilidade. Mais do que uma disciplina, a Bioética é uma interdisciplinaridade, atributo que lhe dá grande valor.
Sendo uma interdisciplinaridade nova, ampla, além das disciplinas da saúde, uma transdisciplinaridade mesmo, a Bioética não foi incorporada na formação de muitos médicos que hoje têm obrigações didáticas na graduação e na pós-graduação nas ciências em saúde. Assim, o “pensamento da Bioética” a ser idealmente incorporado no aprendizado do desenvolvimento do raciocínio clínico pelo jovem, ainda estudante ou já graduado, deve ser intencionalmente apresentado como um valor a ser considerado e propagado. É essencial esclarecer que não haverá uma mudança de comportamentos do tipo da “água para o vinho”, que seria recebida como desnecessária, o que se pretende é o aprimoramento do primordial objetivo da beira do leito, um ser humano cuidando integralmente quanto possível de outro ser humano num ambiente técnico-científico com incertezas e imprevisibilidades sobre benefícios clínicos, segurança biológica em meio a plurais preferências, desejos e valores próprios da condição humana.
Acontece que o jovem médico prioriza o aprendizado técnico-científico, particularmente no decorrer da Residência Médica. Nada mais justo, aceitável e elogiável. Só que a supervisão imprescindível corre o risco de ao mesmo tempo que supre as deficiências técnico-científicas desfavorecer o desenvolvimento de habilidades com o lidar com o ser humano, então paciente. A clássica separação entre doença e doente tão criticada por médicos antigos famosos. Há algum tempo, me dei conta que estava contribuindo para esta dissonância.
Explico melhor. É da rotina do residente em medicina ter anamnese, exame físico, análise de exames complementares praticados per se sucessivamente “corrigidos” no ambulatório e em enfermarias. Contudo, quando há uma situação de crise na conexão médico-paciente/familiar, o residente é considerado pouco competente por ambas as partes e o assistente “mais preparado” vai resolver. Assim, é altamente possível a ocorrência da situação real que me alertou. Ou seja, o assistente dirige-se para lidar com o confronto desacompanhado do residente, e como foi no “dia do estalo”, após solicitar ao jovem médico que, enquanto isso, “vá atrás do exame que está faltando”. Evidentemente, haveria mais ganho para o ser médico do jovem residente que nunca deixasse de ser parte integrante de todos os componentes da relação Medicina- médico-paciente, mais ativo como em anamneses, mais observador, mas não menos colaborativo, em processos de resolução de crises da beira do leito. Suscita reflexões interessantes sobre as interpelações entre responsabilidade, “paternalismo” do médico para com a beira do leito e limites da autonomia num processo de aprendizado sob supervisão.
Assim, é essencial que as autoridades de alguma maneira responsáveis pela graduação e pós-graduação do médico – e de demais profissionais da saúde- valorizem a Bioética de todos nós, o que pode ser simplificado na mensagem: CAPILARIZEM A BIOÉTICA NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL NA ÁREA DA SAÚDE.