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269- Bioética e Panoptismo

panopticonExame é termo bem conhecido pelo médico. Ele se submete a exame para atestar o seu conhecimento e ascender na formação e na profissão e ele submete o paciente a exame para testar órgãos e sistemas e prevenir e corrigir anormalidades da saúde.

Nas últimas décadas, o médico tornou-se objeto de exame de superiores, não no sentido da avaliação da competência por meio do desempenho observado e medido, com suas implicações pedagógicas – reciclagem- e trabalhistas- adaptação às necessidades de ofício. Mas no sentido de exame de conduta, da qualificação pela vigilância sobre seus passos por um poder que, controlador, passa assim a saber a respeito do cumprimento de normas como as previstas num contrato de trabalho. Uma verificação da disciplina do médico, do cumprimento da sua posição no conjunto, utilizando a atualidade eletrônica. Não basta que o médico siga a sua consciência profissional, atenda perfeitamente aos compromissos assistenciais ou de quaisquer outras naturezas  previstas, que não haja reclamações ao longo do tempo, impõe a documentação de atos presenciais como expressão da sua parte contratual. Para as gerações atuais de médicos, tudo isso pode soar óbvio, aqueles que ainda ativos vivenciaram a chamada medicina liberal compreendem melhor as nuances históricas da transformação.

O médico como cidadão fora da profissão aderiu, como milhões de usuários de redes sociais, à modernidade do compartilhamento da sua localização, da revelação do que está fazendo, de flagrantes de privacidade, um comportamento de manada  a respeito de visibilidade que cada médico “sem avental e estetoscópio ao pescoço” pratica como bem entender. Entretanto, assim procedendo, de certa forma, ele formata uma apreciação de conformidade a atitudes análogas de sua exposição que fazem com ele, num hospital onde trabalha, por exemplo. Desvendar-se  autonomamente e ser desvendado por controle heteronômico admitem, todavia, processos de visibilidade distintos.

O uso tecnológico para a classificação de condutas durante a jornada de trabalho num hospital funciona como se o médico fizesse sucessivos selfies inconscientemente, observações de si próprio que não são exatamente postados e admirados, pelo contrário, ficam depositados e administrados.

Explico melhor com o médico CFF, um professor universitário que trabalha num hospital de ensino há cerca de 20 anos, com atividades assistenciais em ambulatório e em enfermaria, colaboração ao ensino no programa de Residência Médica e participação ocasional em projetos de pesquisa clínica.

CFF é um caxias – metonímia genuinamente brasileira-, não tira férias há três anos e sintomas de burnout já foram nele detectados. É daquele grupo de médicos que se mentaliza à aposentadoria recebendo uma condecoração dos superiores pelos relevantes serviços prestados ao hospital. Isto é, se um dia conseguir eliminar a apreciação de sua indispensabilidade e decidir-se parar de trabalhar.

CFF chega ao hospital  às manhãs de segunda-feira a sexta-feira, no horário de sempre, um invariável que se tornou folclórico entre os porteiros- eles acertam os relógios. Pela rotina, passa pela catraca do estacionamento e por outra da portaria, mecanismo que compreende como obstáculo para quem não tem a autorização de entrada – como o seu crachá.  Ele bate o ponto inicial utilizando um meio biométrico – o seu dedo cadastrado pelo RH- num local onde há uma câmera de vigilância, inferindo que o registro é essencial para merecer o hollerit. CFF circula por onde precisa e assim tem a sua imagem captada inúmeras vezes por várias câmeras, que lhe soam como vigilância patrimonial colocadas em locais estudados. Nos ambientes de consultas e de procedimentos, ele nunca identificou câmeras, acredita que seja por obediência institucional a resoluções éticas. Ao final da jornada diária, CFF cumpre nova biometria no ponto de saída, na monotonia do horário de sempre, e novos transpasses pelas catracas. Somente uma vez em tantos anos esquecera de trazer o crachá e passou por um sufoco para ter o acesso liberado, afinal motivo de satisfação pela noção de segurança transmitida no rigor do sistema.

Banalização ou não, CFF acostumou-se com estes pedágios e olhos eletrônicos, não se enxergava  como fator gerador da presença dos mesmos, aliás, há muito não mais percebia que havia câmaras nos recintos. Entendendo-se como um profissional correto, cumpridor das tarefas pelo caráter, ele não precisava se preocupar no hospital além da assistência a seus pacientes, do aprendizado dos residentes e do cumprimento de projetos de pesquisa clínica. Interpretava-se como um profissional de obrigações com pacientes e não como um funcionário obrigado a trabalhar.

CFF jamais se sentiu partícipe de uma versão contemporânea do Panopticon do filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham (1748-1832). Aliás, desconhecia o tema, nunca lhe passara pela cabeça que estava sendo “olhado” como funcionário inserido em regulamentações, e, portanto, nunca pensara sobre o panoptismo de Michel Foucault (1926-1984), resumível como vigiar e punir. Desconhecia, até um determinado almoço temperado com um apimentado comentário no refeitório do hospital.

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Era um dia agitado, o hospital estava nas manchetes pela descoberta de uma fraude envolvendo gente antiga. Foi quando o colega contou um fato a CFF que o deixou chocado. À medida que as palavras eram emitidas como sussurro, que fazia inclinar-se o que podia na mesa, CFF foi ficando de olhos “exoftámicos”, “orelha em pé”  e boca travada para o alimento. Ele não estava acreditando que a sujeição dia após dia (catraca, ponto, câmeras de vigilância patrimonial) representava um poder institucional que se transforma num saber coletânea de evidências contra o sujeito- ou seria objeto?

CFF mentalizou que ele tinha, então, um “prontuário virtual”, oculto, que  permitiria a qualquer momento reconstituir seus passos no hospital, uma enorme ampliação das finalidades que conhecia. O interlocutor foi adiante e lhe disse que tais evidências são utilizáveis quando ocorre um fato suposto ilícito de um colaborador que teria transgredido normatizações determinadas pela organização hierárquica. Ficava, assim, muito fácil recuperar os movimentos de cada um, trajetos, horários e atuações.

CFF estava  atônito,  dando-se conta que “o prontuário instrumento da verdade” por uma vigilância hierárquica  permanente com registro contínuo serviria para uma “acareação” de si (registros) com si próprio (palavra dada). A frase final emitida pelo colega com certa dose de resignação foi que eventuais divergências têm mais chance de serem resolvidas pela prevalência do ditado atribuído a Confúcio (551 ac- 479ac) uma imagem vale mais do que mil palavras. Simples assim! Sentiu-se tomografado porque não se confia na anamnese.

Como sobremesa, CFF, um conhecido desligado do que não era Medicina, apreendeu que a saborosa atualidade da linguagem de programação, quando recheada com catracas, registros por biometria e câmeras de vigilância patrimonial, torna-se um desagradável “prontuário” do médico a ser servido quando alguém com poder institucional entende que é necessário  quebrar o saber “sigiloso”. Pode?

Em tantos anos de exercício profissional naquele hospital, nunca ninguém lhe avisara sobre esta instrumentalização com a finalidade de vigilância disciplinar e uso para apurar fatos suspeitos de ilicitudes. CFF procurou uma referência na mente e se lembrou que ele, pela ética da profissão, só poderia quebrar o sigilo da relação médico-paciente com expressa autorização do paciente, além de dever legal e de uma justa causa difícil de ser produzida. Quer dizer, então, concluiu em solilóquio, que na circunstância da relação médico (assistencial)-médico (gestor), há outra lógica que dispensa a necessidade da solicitação do consentimento para a revelação. Desta maneira, dominaria uma conotação de justa causa superior inserida na “cultura da casa”. Quem sabe haveria espaço para um duplopensar, ponderou CFF, ainda ruminando aquele almoço indigesto. Deu-lhe  vontade de reler 1984 de George Orwell (Eric Arthur Blair, 1903-1950).

No caminho de casa, CFF foi se recuperando do nocaute pelo direto no seu olho conservador, reanalisando a sensação de estar sendo traído, ele numa fidelidade canina aos bons princípios e o hospital desconfiado. Ele era ético e ponto final.  CFF ajustou o pensamento desejando não parecer tão ingênuo a respeito do valor do binômio vigiar-punir, e se deu conta que pouco sabia sobre administração hospitalar, os deveres do gestor, o cumprimento de regimentos e de leis frente a abusos. Pesou recordar-se da manchete do dia que lhe trouxera uma sensação de revolta com os fraudadores, a vigilância eletrônica poderia ter sido útil para capturar evidências dos ilícitos. Já se esboçava uma certa aceitação, afinal, havia uma população volumosa e exigências de honestidade e de produtividade que, quem sabe, poderiam justificar um “prontuário” do médico, individualização de verdades incontestes para subsidiar juízos de comportamento. Chegando em casa, o que doía mesmo era a decepção com a omissão da comunicação pelo hospital.

Alguns almoços sequenciais, CFF tocou de modo recorrente no assunto com colegas. Parecia hipnotizado pelo assunto.  CFF verificou que alguns colegas conheciam a vigilância institucional como “noticiário dos corredores” que reverberavam que mais do que patrimonial, ela era “patrulharial” por câmeras delatoras; outros colegas se surpreenderam como ele, alguns consideraram-se violentados e que algo deveria ser feito, os médicos não poderiam ser dóceis controlados, enquanto que uma boa parte, embora perplexos, achavam que era inevitável, uma das vulnerabilidades modernas a conviver; uma minoria silenciosa desconversou- tudo indicava, pelando-se de medo de se comprometer com uma opinião, como se os talheres embutissem microfones. Houve uma unanimidade, porém: Os médicos precisavam ser informados sobre os usos da vigilância pessoal.

Um dias destes, CFF teve um sonho,  daqueles de que se recorda perfeitamente ao acordar. Ele entrara no hospital, estava guardando o crachá que passara na catraca, quando viu um grande cartaz  pronto para ser afixado no saguão. Aproximou-se e leu (Quadro):

dr

Alô Bioética!

 

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