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952- So…mente uma mentira (Parte 6)

É costume se dizer que não existe a aposição de um carimbo certo ou errado para interpretações realizadas numa consultoria em Bioética. O objetivo é promover a calibragem de prós e contras segundo perspectivas éticas/morais/legais, evidentemente ressalvado o desprovido de propósito e o desrespeitoso de imperativos convencionados.

Não faltam situações em que é polêmica a decisão por internação hospitalar ou atenção ambulatorial. Suponha, bioamigo, que o médico considerou a internação do paciente porque não havia sucesso na conduta ambulatorial e o quadro clínico agravava-se dia após dia. O paciente recusou, algumas modificações na prescrição foram feitas e marcou-se retorno em uma semana.

Na nova consulta, nenhuma melhora foi observada e pela primeira vez houve a presença de um acompanhante que insistia em participar da consulta apesar de veemente protesto do paciente. O médico ouviu a discussão a sua porta inclusive o doutor vai ficar sabendo dito pelo acompanhante.

Bioamigo, vamos congelar este momento e considerar que o médico ficou curioso sobre o o doutor vai ficar sabendo  que ouviu vindo do corredor e em dúvida se iria ou não atrás do acompanhante, um desconhecido para ele, que o paciente não deixou entrar no consultório.

O médico considerou 3 atitudes: a) ignorar a advertência; b) dizer para o paciente que ouviu e indagar o significado; c) sair da sala e ir conversar com o acompanhante na sala de espera. Neste momento, ele usa o pó de pirlimpimpim do Sítio do Picapau Amarelo de José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948) e transporta-se para diante de uma consultoria em Bioética.

Havia um pressuposto de mentira no comportamento do paciente gerado pelo enunciado o doutor vai ficar sabendo e as seguintes apreciações foram alinhavadas:

  1. O emissor da advertência não fazia parte do prontuário do paciente, com certeza não era o responsável indicado registrado, o sigilo profissional poderia vir a ser indevidamente quebrado; alguém ponderou que esta visão era um excesso de racionalidade, que faltavam elementos sobre quem de fato era o acompanhante na vida do paciente, e a réplica foi isso importa sem autorização do paciente?
  2.  O paciente estava capaz e rejeitava qualquer interferência do acompanhante; alguém considerou que o paciente poderia estar fora de si e a réplica foi que uma expressão de vontade deve ser considerada como a realidade do fato, desde que não haja uma comprovoção em contrário;
  3. O direito à autonomia pelo paciente inibiria uma autorização do médico para a presença do acompanhante na consulta; alguém indagou se o consultório não é um local do médico e a réplica foi que o respeito à pessoa do paciente inclui suas escolhas de acompanhante e, em decorrência, de eventual participação ativa no atendimento;
  4. O direito à autonomia pelo paciente inibiria uma atitude do médico de procurar o acompanhante fora do consultório; alguém argumentou que poderia ter acontecido sob desconhecimento do paciente e a réplica foi que teria sido um desrespeito profissional ao conhecimento que a palavra do acompanhante não estav autorizada pelo paciente;
  5. O princípio da beneficência alinhava com a curiosidade do médico devido à má-evolução clínica do paciente; alguém afirmou que teria sido uma postura de comprometimento de um bom médico, interessado no paciente e a réplica foi que teria sido uma indiscrição que extravasaria os contornos morais da conexão médico-paciente;
  6. A consciência profissional do médico que lhe insistia que o acompanhante poderia revelar uma explicação do insucesso era uma típica representação da habitual rota de colisão entre beneficência e autonomia; alguém insistiu que preferiria sofrer alguma punição a não seguir sua consciência profissional e a réplica foi se valia o risco de desafiar o que era expressão autêntica, embora reprovável, do paciente;
  7. A memória profissional do médico fazia suspeitar fortemente de uma não adesão do paciente à conduta terapêutica, era a razão da proposição da internação hospitalar, mas uma abordagem direta teria o potencial de ferir a dignidade da pessoa do paciente; alguém acentuou que era a dignidade do médico que estava sendo ferida pelo eventual descumprimento pelo paciente e a réplica foi que o profissionalismo requer evidências.
  8. A suspeita de paciente comunicando mentiras ao médico não justifica a emissão de juízos moralizantes da parte do médico; alguém mencionou que médico não precisa ter sangue de barata, está longe de ser um pecilotérmico e a réplica foi que não, o médico precisa mesmo ter sangue frio;
  9. Não deixava de haver uma prudência moral em lavar as mãos como Pilatos, pois o paciente estava recebendo orientação tecnocientífica correta e ele é o responsável por cumpri-la em domicílio; alguém rejeitou que o médico deva ser um indiferente e a réplica foi que não se trata de insensibilidade;
  10. A intuição profissional de que o paciente estava mentindo não tem fundamento ético e legal e mesmo se o paciente fosse desmascarado, qual seria o efeito prático? Caso não confessasse não serviria de argumento para justificar em prontuário o insucesso terapêutico. Ninguém contestou!

O o doutor vai ficar sabendo ilustra o valor da Bioética na crítica da linguagem na beira do leito. Há uma semântica na frase do acompanhante, algo relevante para o bem do paciente precisa ser revelado, mas, ao mesmo tempo, há um contexto, a circunstância da oposição do paciente de que poderia ser um bem para ele na sua própria e prioritária decisão.

Há um conhecimento do acompanhante que se torna uma pressuposição do médico e que, assim, entra no caso com um potencial de verdade, mas, também, carregando uma indeterminação, uma falsidade do acompannhante- até mesmo apenas conjecturas- não pode ser excluída.

A Bioética lida com perspectivas, especialmente em conflito. Prós e contras sustentam a tomada de decisão sobre atitudes dentro da arte de aplicar ciência. Os fundamentos dos princípios da beneficência e da autonomia mostram-se imprescindíveis para evitar dentro do possível carimbos de certo ou de errado em proposições de comportamentos sobre bom para quem?

A propósito bioamigo, você iria esclarecer o o doutor vai ficar sabendo com o acompanhante? Entenderia como compromisso com a sua consciência profissional – pró-beneficência? Ou você privilegiaria o compromisso com o paciente- pró-autonomia? Ou então, faria uma síntese, o compromisso com o paciente e com sua consciência profissional se superpõem?

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