A Bioética desde Paul Max Fritz Jahr (1895-1953) envolve-se com a tríade (não)quero/(não)posso/(não)devo no que concerne à aplicação de conhecimentos científicos e de técnicas invasivas e preservação do respeito à pessoa. São cerca de 100 anos, acelerados nos últimos 40 anos pós-Van Rensselaer Potter (1911-2001) e o Relatório Belmont. É entendido que nenhuma vontade escapa de restrições e dá utilidade à conjunção mas na Bioética, especialmente acerca de conjecturas sobre limites e limitações.
Continuando com a analogia com o iceberg, os 11% acima da superfície é bem percebido, mas há cerca de nove vezes mais conteúdo oculto. A medicina parece manter sempre este tipo de proporção à medida que novos conhecimentos geram mais percepção de desconhecimentos. A conexão médico-paciente, por sua vez, também lida com uma proporcionalidade assemelhada, verificamos o volume de “geladas” que ficou inaparente quando surgem os conflitos.
A Bioética da Beira do leito é inquieta, ela precisa ser. Não lhe basta o perceptível. Ela é voyeur do submerso, ciente que sempre há algo a mais não explícito, consciente do gosto de exercitar pensamentos para abranger quantos ângulos possam ser ponderados numa questão. A Bioética da Beira do leito entende que a água doce dos rios corre invariavelmente para se tornar salgada, mas em determinadas circunstâncias, uma mudança do estado físico impede a habitual mistura e provoca alertas e confrontos.
No caso do paciente referido, a Bioética da Beira do leito interessou-se pelo dito e pelo não dito como consentimento do paciente ao médico. Há muito mistério no submerso de um consentimento livre e esclarecido passível de necessitar ser desvendado e, assim, admitir o significado de Eureka- descobri! Visto que a considedração de livre e esclarecido do paciente pode ser mera suposição alinhada à intenção profissional, que inexistem, habitualmente, provas seguras da ocorrência, é conveniente que as nebulosidades não sejam descobertas tardias, por isso, o valor do entendimento sobre a real abrangência de um Sim ou de um Não do paciente.
Cética por propósito, a Bioética da Beira do leito recomenda desdobrar a síntese Sim do nosso exemplo em seus possíveis componentes tendo como pano de fundo o paradoxo de sorites e suas implicações com com a tríade (não)quero/(não)posso/(não)devo, que na verdade compõe oito combinações. Não é tão somente um projeto intelectual, sua praticidade está no objetivo de dar transparência ao oculto na tomada de decisão do paciente. Numa eventual subsequente reclamação, a distinção de linhas divisórias é essencial para os juízos éticos e legais.
Se no iceberg flutuante no oceano, a separação entre o aparente e o oculto é dada pela natureza, na beira do leito, ela varia de acordo com a adjetivação humana da natureza. A natureza humana cria “linhas d’ água” e interpretá-las é de interesse da conexão médico-paciente.
De fato, a vivência nos meandros do Sim livre e esclarecido proporcionada por casos com conflitos médico-paciente ensinou-me que o emerso é suficiente desde que não haja frustrações das expectativas. Mas é sempre bom contar com a possibilidade, a cautela de levar tudo em conta dada pela ética da responsabilidade que nos diz que devemos responder não somente por nossas intenções ou nossos princípios, mas também pelas consequências de nossos atos, tanto quanto eles possam ser previstos.
Para a Bioética da Beira do leito inexiste um livre e esclarecido absoluto. A tomada de decisão de cada paciente é uma representação individualizada de aparentes e de ocultos, de água doce em meio a água salgada, que está sujeita ao sentido de indeterminação dado pelo paradoxo de sorites formulado por Eubulides de Mileto (século IV ac).
Quantos “grãos” de informação do médico podem ser perdidos sem impedir a consideração de esclarecida para o paciente é de resposta variável de paciente para paciente e no decorrer de mesmo atendimento em função de mudanças de circunstâncias.
Ao esclarecer a recomendação para a intercorrência no caso apresentado, o médico mentalizou com naturalidade profissional a ocorrência da infecção hospitalar – afinal hospital com estatística zerada não tem credibilidade- e que era da sua responsabilidade resolver a manifestação adversa. Assim mergulhou na mente do paciente. Mas -sempre tem um mas-, uma voz interna sussurrou-lhe: Você não costuma relacionar infecção hospitalar na relação das adversidades possíveis pois entende que todo mundo sabe disso e assusta o paciente, mas como se conduzirá a um questionamento sobre esta “omissão” em que qualquer resposta será capenga? Um teste para a hipocondria moral e um desafio para a empatia.
O paciente-alvo recebeu o mergulho e precisou seguir a sequência mental de algo possível/efeito provável/de fato existente/contra efeito necessário. Verbalizou o Sim pretendendo a aplicação mais imediata possível. Tudo eticamente perfeito. Mas, a figura do iceberg estava lá presente, flutuando entre muitos pensamentos, água doce em água salgada, imiscível e desafiante.