Bioamigo, vamos considerar um paciente sem nenhuma influência externa de momento a não ser a da boa compreensão da comunicação do médico no contexto da sua necessidade de saúde. Eu sei que você também acha que não é o habitual, mas admita para um exercício envolvendo Bioética.
Pois é, bioamigo, teríamos, então, um modelo de perfeição conceitual para a manifestação do consentimento livre e esclarecido. Seria algo como um “Eu” paciente puro, de primeira ordem, uma voz interna independente e imperativa para a tomada de decisão- consentimento ou não. Seu Sim ou seu Não expresso com autenticidade pessoal e com a legitimidade moral para ser respeitado profissional e familiarmente. Os textos sobre direito coletivo ao princípio da autonmia satisfeitos, não necessariamente o contexto fisiopatológico individual.
Saúde já foi considerada dádiva dos deuses e a doença castigo. Hipócrates (460ac-370ac) relacionou locais da moradia, água para beber e ventos com a saúde e a doença. Hoje, a multicausalidade preenche as possibilidades etiopatogênicas. A natureza, o ecossistema onde o ser humano vive, importa muito no processo saúde-doença. A microbiologia, sua relação com zoonoses, é ilustrativa.
Fenômenos da natureza interessam as ciências da saúde e trazem aspectos pedagógicos. Eles acontecem de um modo que por mais que possam desagradar nossas expectativas devem ser entendidos como “naturais”, ou seja, alinham-se a uma linguagem que os fazem respeitados com resignação, com submissão, com compreensão. O bioamigo certamente já se manifestou deste modo perante uma tempestade do calor de verão, uma ferocidade de um animal de estimação para alguém, uma picada da abelha que proporciona o mel que tanto aprecia. Prevenções de consequências “naturais” e adaptações do “natural” para usufruto humano caracterizam ecossistemas onde se pretendem bem-estar e qualidade de vida.
No que diz respeito ao ecossistema da beira do leito, a Bioética da Beira do leito gosta de repercutir que a natureza é nosso mestre e que sermos aprendiz é opcional mas recomenda-se. Bons discípulos da natureza ganharam fama, tornaram-se benfeitores da humanidade. Nicolau Copérnico (1473-1543), Isaac Newton (1643-1727), Charles Darwin (1809-1882), Louis Pasteur (1822-1895), Sigmund Freud (1856-1939), Albert Einstein (1879-1955), Carlos Chagas (1879-1934) e Alexander Fleming (1881-1955) distinguiram-se na sala de aula da natureza.
Aqui entra, então, a lição do iceberg. O termo tornou-se universal, alinha-se à física, ao ambiente, à navegação e predispõe-se a metáforas. Não nos permite esquecer de outro aluno da natureza Arquimedes de Siracusa (288 ac-212 ac), seu banho de banheira e seu brado de Eureka! – Todo corpo mergulhado num fluido em repouso sofre uma força ascendente com intensidade igual ao peso do fluido deslocado pelo corpo. Por analogia, pacientes ao serem mergulhados na medicina validada sofrem influência proporcional ao peso da gravidade clínica com que interagem.
Continua viva a cena do momento em que ouvi no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, que todos os rios cumprem o papel na natureza de levar a água doce das nascentes para se transformar em água salgada nos oceanos. O clima de mistério foi envolvente. No trajeto em leitos de terra, os rios proporcionam vida.
Logo a seguir, aprendi que o iceberg é um modo desta interação pois é formação de gelo polar – portanto é uma montanha de gelo de água doce- que ocorre em água salgada do oceano devido a uma flutuação de acordo com o Princípio de Arquimedes. Não se mistura e salga, convive doce. Uma inspiração para a criatividade. O paciente deve persistir ele mesmo mergulhado na medicina. O princípio da autonomia reconhece.
Assim, de acordo com as leis da Hidrostática, 11% da montanha de gelo de água doce é visível sobre a superfície do oceano salgado, assim se apresentou ao RMS Titanic. A Bioética da Beira do leito entende que o imerso complementar de 89% não está longe de representar o que fica oculto na beira do leito aos olhos de um observador não profissional.
A exigência contemporânea da prudência pela obtenção do consentimento do paciente para a aplicação zelosa da recomendação médica embute a metáfora do iceberg.
De uma maneira radical, é verdade, mas admissível porque pedagógica, a doença encontra-se emersa, seu diagnóstico, seu prognóstico e sua proposição terapêutica na água salgada da medicina e muito da mente dos doentes está na parte de água doce invisível.
A possibilidade de uma violência pelo impacto de uma recomendação médica indesejada pelo paciente foi levada em consideração no caso que estamos exemplificando e, agora, o Sim do paciente foi um mergulho que fez contornar o iceberg e deixá-lo para trás.
O paciente após o Sim receberá o antibiótico indicado para a intercorrência. Mas, bioamigo, aqui entre nós, apenas como exercício mental, imagine, se o paciente não desse o consentimento, teríamos um Não como um iceberg flutuando bem à frente… Se você pensou: impossível… bom, então porque faz-se necessário solicitar o consentimento numa intercorrência pós-operatória exigente de terapêutica específica? Poderia ser considerado embutido no consentimento original… para o que der e vier. Em outras palavras, os esclarecimentos sobre adversidades possíveis são motivados, tão somente, para a apreciação sobre a aceitação da recomendação ou também para autorizar condutas a elas relacionadas se de fato acontecerem?