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919- Uma visita de Aristóteles (Parte 2)

– Fique à vontade, Aristóteles, não é todo dia que recebemos este presente de grego.

-Doutor, por acaso houve algum sentido figurado?

-Não Aristóteles… Por favor nos dê a honra.

– Aprendi a valorizar as entrelinhas, mas deixa pra lá, será uma honra poder colaborar com a Bioética da Beira do leito, tenho ouvido falar bem dela… Aliás o Hipócrates está muito orgulhoso, ele me disse que adotaram o seu primum non nocere.

– É verdade.

-Mesmo com todo o progresso de poder fazer o bem, vocês evitam prejudicar.

-Pois é, mais progresso, mais necessidade de atenção a malefícios.

– Foi o que eu pensei, nada de presente de grego…

-Chamamos de não maleficência, mas, com tantos recursos é difícil de ser aplicado na prática. É quase impossível não haver uma coceirinha, uma dorzinha de estômago… Usamos  até este distintivo da não maleficência.

-O que representa?

–  Um comprimido de protetor gástrico.

-Entendi… Posso me aproximar do paciente?

-Por favor, venha a…gregar.

-Olá Sr. José! Meu nome é Aristóteles e soube que o senhor precisa fazer um procedimento nas suas partes mas está em dúvida se deve.

-É isso mesmo doutor… doutor Ari… Ari…?

– Pode ser Ari só…

-Então Dr. Ari, o doutor  me disse que ele precisa tirar toda a minha próstata, veja só, ele precisa e sou eu quem vai fazer xixi sem querer, não é uma boa troca, o senhor não acha?

-É que a sua próstata está doente.

– Eu sei, eu é que preciso me livrar de uma doença por ser homem.

-Exatamente.

-Mas aí fico com outra doença.

-Não será uma doença.

-Pior, Dr Ari.  A tal da incontinência eu não quero, agora que meus netos não usam mais fralda, o avô vai usar? Tenho vergonha, um homem usando fralda, meus amigos vão acabar comigo.

-Compreendo Sr. José, eu vivi 62 anos e nunca nem médicos nem deuses me falaram da próstata e olha que eu levantava várias vezes à noite para fazer xixi.  Posso até ter morrido por causa dela. O senhor está tendo uma oportunidade…

-Dr. Ari, o senhor morreu?!

-É modo de dizer…

-Entento, o senhor está com depressão… Dr. Ari, prefiro morrer a ter de usar fralda, não quero ficar com depressão.

– Desculpe Dr. Ari… quer dizer Aristóteles, nós explicamos ao Sr. José que é uma possibilidade e se acontecer tem chance de resolver.

– Doutor, pela cara que o senhor fez, deu para sentir que pode não resolver.

-Sr. José, o doutor falou em possibilidade não é verdade?

-Falou Dr. Ari, mas possibilidade na boca de doutor para mim significa que vai acontecer. Dr. Ari, ouvi há pouco que o senhor é professor de filosofia, eu estudei alguma coisa de filosofia e me lembro que teve um grego, não me lembro o nome, que dizia que uma pessoa parada conserva o potencial para andar e uma pessoa de olhos fechados conserva o potencial de enxergar.

-Este grego era… deixa para lá. Doutor, eu vi lá fora um cavalete flip-chart, alguém poderia me trazer?

– Pronto, aqui está, Aristóteles.

-Obrigado.  Sr José preste atenção

Quadrado

-Sr José, qual destas 4 afirmações o senhor deseja que seja a verdadeira para o senhor?

-Dr Ari, aquela ali, a B, Nenhuma operação causa dano.

-Então vamos anotar, o paciente deseja que a afirmação Nenhuma operação causa dano, a que chamamos de B,  seja verdadeira.

-Positivo, Dr. Ari, gostei.

-Agora doutor, o senhor como médico experiente que é, qual a afirmação racionalmente mais verdadeira para o senhor?

– É Alguma operação não causa dano, letra D.

– Então o desejo do Sr. José, o nosso paciente e a razão do nosso médico são o que chamo subalternas, ou seja, se B for uma verdade, D também será uma verdade. Veja Sr José, o seu desejo está mais próximo do doutor do que você imagina.

-Fiquei confuso, Dr. Ari.

-Normal. Nós afastamos Toda operação causa dano (A) e Alguma operação causa dano (C). Correto?

-Correto Dr. Ari, isto eu entendo.

-Pense então, Sr. José, que se senhor deseja que A- Toda operação causa dano seja falso, então C-Alguma operação causa dano por ser subalterna, pode não se aplicar para você.

-Acho que agora entendi Dr. Ari. Estou ficando mais otimista.

-Desculpe Aristóteles, eu, como o médico responsável, não posso concordar com este seu modo de pensar,  deixar de lado que alguma operação causa dano e que não será a dele, toda operação causa dano.

-Doutor, eu sou filósofo, o consentimento está ligado a valores, se o senhor afirmou agora há pouco que por sua razão o verdadeiro era Alguma operação não causa dano, então Toda operação causa dano é falso porque será contraditória. Preste atenção na figura.

-Aristóteles, não posso passar um excesso de otimismo que a incontinência não vai acontecer.

-Então doutor, muda para a opção A, Toda operação causa dano.

Não é uma verdade.

-Então doutor… Ficou bem esclarecido. Doutor, o senhor está preocupado com a sua imagem, de ser taxado de mentiroso, mas lembre-se só mente quem sabe a verdade e já vimos que Toda operação causa dano não é uma verdade.

-O senhor está fazendo um jogo de palavras.

-Beneficência e (não) maleficência não é um jogo de palavras? Transpor o tecnocientífico com tantas indeterminações para a linguagem não pode evitar um componente do interesse do médico. Foque a sua recomendação no benefício que é o que o médico precisa fazer e credite a adversidade ao método. Assim, sua linguagem terá mais eco e ressonância no paciente, sem nenhum trocadilho, doutor.

– Dr. Ari, o senhor pode me operar? Eu aceito, ganhei confiança no senhor, e se der errado, paciência, sei que o senhor compreendeu a minha angústia e tentou me ajudar. Posso ficar com este papel para mostrar para a minha família na visita? O senhor pode autografar?

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