Contraposições entre beneficência e autonomia observadas na beira do leito impactam na consciência do médico. Não poderia ser diferente. Os impactos têm gradações nas infinitas situações de emergência e eletivas que doença e doente constituem ao longo dos atendimentos. O texto da medicina, a linguagem médico-paciente e o contexto da beira do leito interagem caso a caso. Uma das facetas mais belas e complexas da arte de aplicar ciência na área da saúde.
De alguma forma, lidar com uma recusa do paciente a se submeter a recomendações diagnósticas, terapêuticas ou preventivas inclui refrear a objeção de consciência do médico de se ver deixando de praticar o que faz parte de suas obrigações profissionais. É do treinamento em serviço do médico que há o ideal da medicina e há o possível para o respeito à pessoa do paciente e que o objetivo ético/moral/legal profissional é a superposição. Assim, o decorrer do século XX determinou para a beira do leito. A Bioética contribuiu e tornou-se natural guardiã.
A beira do leito contemporânea está estruturada de modo que o não consentimento pelo paciente impõe um juízo de prudência do médico pelo contexto em não fazer o que pretendia incontestavelmente fazer pelo bem do paciente obedecendo ao texto científico.
O carimbo com nome e número do CRM precisa relembrar cotidianamente ao médico que os aspectos tecnocientíficos da medicina como presentes nas entrelinhas do juramento de Hipócrates e de princípios fundamentais do Código de Ética Médica devem ser oferecidos ao paciente pois o médico é um agente moral da beira do leito, mas não o único da conexão médico-paciente. Presumo que o majoritário consentimento dos pacientes no mundo real da beira do leito contribua para a dificuldade de manejar um não consentimento. Cabe a percepção de Millôr Fernandes (1923-2012): Toda regra tem exceção. E se toda regra tem exceção, então, esta regra também tem exceção e deve haver, perdida por aí, uma regra absolutamente sem exceção.
Posso testemunhar como a minha consciência profissional começou forjada como um compromisso moral em alto predomínio tão somente comigo e evoluiu para a inclusão de um também compromisso moral fortemente impositivo com o modo de pensar do paciente sobre suas necessidades de saúde.
Ao me diplomar em 1967, o Código de Ética Médica (1965) me impunha que É da exclusiva competência do médico a escolha do tratamento para seu doente, devendo ele orientar-se sempre pelo principio geral de ‘primum non nocere’ (Artigo 48º), ao mesmo tempo em que O médico, salvo o caso de ‘iminente perigo de vida ”, não praticará intervenção cirúrgica sem o prévio consentimento tácito ou explicito do paciente, e tratando-se de menor ou de incapaz, de seu representante legal (Artigo 49º).
O entendimento era que a escolha cirúrgica precisava do consentimento do paciente, mas não a prática das escolhas clínicas. Assim, estava ainda no ar os efeitos do Preceito 8º que se recomenda ao público seguir em beneficio dos enfermos e da harmonia que deve reinar entre o grêmio médico do Código de Moral Médica (1929): O enfermo deve implícita obediência às prescrições medicas, as quais não lhe é permitido alterar de maneira alguma. Igual regra é aplicada ao regime dietético, ao exercício e qualquer outras indicações higiênicas que o facultativo creia necessário impor-lhe.
Decorridos 52 anos, lido diariamente com a atualidade do Art. 31 do Código de Ética Médica (2018): É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.
O que penso, bioamigo, é que a minha consciência voltada para o profissional ao longo deste tempo não mudou no seu aspecto maior, ou seja, continuo com o mesmo solilóquio: esteja atualizado tecnica e cientificamente para fazer as recomendações ao paciente, mantenha o seu senso natural de certo e errado, mas, faça uma necessária distinção entre prudência e zelo.
A Bioética da Beira do leito entende que prudência refere-se ao processo de tomada de decisão e que zelo diz respeito à qualidade do praticado. A linha divisória entre eles é o consentimento pelo paciente. Assim, a ética da responsabilidade nos afirma que devemos responder não apenas por nossas intenções ou nossos princípios, mas também pelas conseqüências de nossos atos, tanto quanto possamos prevê–las. É, pois, uma ética da prudência a ser aplicada na elaboração das estratégias com foco na beneficência e na não maleficência. Passado o pedágio do consentimento pelo paciente, o senso moral alinhado à consciência é imperativo para honrar a recomendação – com eventuais ajustes da original-, o que significa reconhecer a responsabilidade da intenção e pelas consequências previsíveis e, por que não, compreendidas e aceitas pelo paciente.
Caso haja um Não do paciente, a Bioética da Beira do leito recomenda que seja sempre que possível visto como um Não provisório. A consciência do médico dificilmente deixa de considerar as convicções profissionais e, por isso, deve se propor a entender as razões da negativa e empreender novos esclarecimentos, tendo o cuidado de não ultrapassar algum limite do que viria ser considerado coerção ou proibição.
Tornado o Não definitivo, o compromisso ético é sempre que possível entendê-lo não como um fator de objeção de consciência inclinado a abandonar o paciente, mas procurar prover o máximo acolhimento dentro da moldura imposta. Vale dizer, a tomada de decisão do paciente embora em desacordo, não deve impedir o quantum de zelo alternativo couber na conexão médico-paciente. Como aprendi do mestre Marco Segre (1934-2016) quem muito me instruiu em Bioética: O paciente não está contra o médico quando se nega a se submeter a um tratamento recomendado, ele se nega é à medicina e por razões pessoais, continue acolhendo dentro do possível.