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896- Granulando o adequado (Parte 3)

A conduta terapêutica recomendada pelo médico e a ser consentida pelo paciente admite distintas formulações. Pode ser nenhuma específica, pode ser única, pode ser opções equivalentes, pode ser  opções antagônicas como expectante x aplicação imediata de um método.  Ao apresentá-la, o médico não é exatamente neutro – ele quer/deve/pode-, mas precisa ser imparcial na exposição ao paciente.

As fronteiras entre neutralidade e imparcialidade estão sujeitas a nebulosidades. Há sempre o risco do inconsciente direcionar as linguagens verbal e não verbal para certa parcialidade. Na beira do leito, o VAR (Video Assistant Referee) pode acontecer depois, numa representação contra o médico. Ou seja, o quis ou não quis  aplicar é revisto quanto ao devia/podia.

As diretrizes clínicas usam a expressão classe de recomendação e as cinco catalogadas distinguem-se por três atributos: utilidade, eficácia e segurança. CLASSESEste outro trio deve, portanto, sustentar os esclarecimentos do médico ao paciente a fim de gerar corretas expectativas beneficentes/não maleficentes a serem filtradas por  desejos, preferências, objetivos e valores, assim caracterizando genuíno exercício do direito à autonomia pelo paciente. Mas sempre lembrando que diretrizes clínicas não são algemas que nos levam para onde não desejamos, são bússolas (melhor atualmente waze?), portanto instrumentos de orientação.

Cumprindo sua função de agente moral na beira do leito, o médico, mais cordial, menos cordial, mas sempre com coração beneficente, espera (nos sentidos de aguardar e contar com) a concordância do paciente. É a resposta pressuposta nos textos sobre terapêutica, quer livros, quer artigos em revistas pois cuidam, essencialmente, de fazer o bem clínico melhor para o paciente. O noviciado decodifica como “tenho que fazer” e cabe à Bioética participar do consórcio ético/moral/legal Pela autonomia do paciente.

Vem informação, vira esclarecimento e volta como consentimento. O bumerangue do direito ao princípio da autonomia. O bioamigo já teve alguma experiência em atirar um bumerangue? Eu tentei na Austrália… Pois é, parece fácil… Parece… E hesitações, indecisões acontecem… E como era fácil para o instrutor…

O paciente, ao aplicar seus modos de ver a situação sobre a matéria-prima recebida e pelo direito de opinar, com apenas três letras exerce algum tipo de controle sobre os componentes da estratégia terapêutica com os quais pode nunca ter tido alguma experiência- o habitual, aliás. Duas vogais influenciam mais do que duas consoantes e o til parece aplicar ênfase. A linguagem exerce grande poder na beira do leito e há vários ouvintes imagináveis para o Sim e para o Não representando eticidade, moralidade e legalidade.

Posições relativas dos esclarecimentos para a ordenação final deliberativa são influenciadas pelo par  necessidade e prognóstico conforme compreendido no momento. Como nos ensina George Loewenstein (nascido em 1955), em situações “hot”, a tendência humana é superestimar a preferência de momento. Justifica-se o desejo pelo analgésico na dor. Mas em situações afetivamente “cold”, a tendência humana é ter dificuldade em apreciar totalmente o que poderá ser uma situação afetivamente “hot”. Apesar de consciente dos riscos, o paciente sente-se saudável e persiste fumando. Cabe ao médico dar o equilíbrio, considerar o “hot-cold gap” e como disse Sun-Tzu (544 ac-496 ac) em seu livro A Arte da Guerra, na guerra preparar-se para a paz e na paz preparar-se para a guerra. Por isso, bioamigo, como Loewenstein expressou, não vá ao supermercado com fome, o carrinho parecerá pequeno.

A verbalização final do processo de consentimento pode ser uma superficialidade afirmativa ou negativa – uma resposta de bate-pronto motivada pela premissa de faço o que o doutor vier a propor (submissão conceitual, situação de dor forte, experiências vivenciadas) ou pela premissa de que nada farei (insubmissão conceitualsituação de falta de confiança no ambiente). Entre estes extremos ocorrem os aprofundamentos de pensamentos do paciente numa calibragem individualizada de um processo delicado de construção mental. A aplicação da capacidade cognitiva traz a chance de adaptações ao inicialmente exposto.

De fato, solicitações de alterações são frequentes pelo paciente. Mundos substitutos são mentalizados em proporções individualizadas do que pode ser eticamente admissível ou inadmissível, em função de uma composição de fatos verdadeiros,  falsas impressões  e alguns sonhos no contexto da contemporaneidade da medicina. A inter relação autonomia, beneficência e não maleficência admite, pois, um eficiente uso do lápis/borracha na conexão médico-paciente, em busca do melhor desenho para a circunstância.

A avaliação moral/ética/legal de adaptações da beneficência/não maleficência pelo médico em função do respeito ao direito do princípio da autonomia pelo paciente precisa ser treinada. É do profissionalismo  aprender a lidar com variantes do mundo terapêutico ideal, sua flexibilização, o que significa atentar para a questão: o quanto de mudanças do planejamento inicial pode ser etica e legalmente acordado entre médico e paciente? A adaptação inclui a atenção, embora restrita, após um não consentimento definitivo do paciente à beneficência recomendada. Só excepcionalmente, deve prevalecer o exposto no § 1° do Art. 36 do Código de Ética Médica vigente: ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento.

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