A capacidade de refinar a recomendação médica tem enorme variação e uma delas que interessa especialmente à Bioética da Beira do leito é o despreparo do paciente para se colocar no lugar do médico. É habitual o paciente experimentar uma sensação de barreira no acesso ao mundo da medicina para se expressar, algo como uma gagueira que não é causada exatamente por uma dificuldade de fala, mas por obstáculos em assumir o seu lugar no contexto.
Tudo se passa como mais fácil tornar-se mero receptador da voz heteronômica do médico como se ele fosse um ventríloquo, por exemplo, quando há pressões de muitos circunstantes que funcionam como consciência moral para “decidir corretamente”. Algo como numa premência de decisão, o paciente percebe-se esclarecido, embora não consiga reproduzir minimamente as explicações do médico. Quanto mais se mexe em autonomia, mais ela se revela calidoscópica!
O direito à palavra ativa do paciente persiste em qualquer momento da conexão médico-paciente, por isso, o consentimento além de livre e esclarecido é renovável e revogável. Daí a imprescindibilidade de o médico estar disponível para uma continuidade do processo de tomada de decisão além do formal momento que precede a transformação da recomendação em aplicação.
O jogo de xadrez incide quando se verifica a necessidade de uma distância entre suprir necessidades com o potencial de beneficiar e o que o paciente pensa a respeito disto e, ao mesmo tempo, interpretar – ou sujeitar-se a interpretações de terceiros- com bastante atenção a como estão redigidos os artigos Art. 3º- É vedado ao médico deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou ou do qual participou… e Art. 4º- É vedado ao médico deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha praticado ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu representante legal. Na interpretação da preposição sobre e da conjunção ou dos artigos acima não pode ser desconsiderada a possibilidade do trabalho em equipe- o clínico indicou, por exemplo, mas foi o cirurgião quem procedeu- e a possibilidade de um não consentimento ou não aderência pelo paciente.
Nesta confusão de níveis de realidade, a física quântica auxilia. Os textos acima referidos podem ser considerados análogos ao Gato de Schrödinger (Erwin Schrodinger -1867-1961, Prêmio Nobel em 1933). Um determinado gato é imaginado dentro de uma caixa com um pote de veneno junto, estaria ele vivo ou morto num determinado momento em que se pensa na situação? Pela física quântica, ele estaria vivo e morto ao mesmo tempo. Em suma, a realidade da beira do leito não deve aceitar a imprecisão de não se saber do consentimento.
Nesta linha de raciocínio, a Bioética da Beira do leito admite a não separabilidade como um de seus alicerces e compõe-se com o preceito ético que a responsabilidade profissional do médico é sempre pessoal e não pode ser presumida. Na prática, alinha-se a conceitos tradicionais como alta hospitalar mas não alta clínica, à habitual atenção ao prescrito ambulatorialmente durante seu uso e possibilidade de revisão crítica, ao entendimento de fidelidade (meu médico, meu paciente). Articula-se com a possibilidade de novas tomadas de decisão pelo paciente com ciência do médico.
A Não separabilidade é um conceito da microfísica aplicável à beira do leito que significa que entidades quânticas continuam a interagir após o afastamento, independente da distância. A percepção habitual é que médico e paciente interagem e se afastam. A distância física, contudo, não altera a responsabilidade profissional no decorrer da aplicação de uma conduta. Reforçando, uma alta hospitalar ou uma prescrição ambulatorial não separam o médico do paciente em termos da responsabilidade profissional. Atualmente, com o médico na palma da mão do paciente, literalmente, por smartphones, este comportamento da microfísica tornou-se essência da conexão médico-paciente.
O paciente conhece a medicina que lhe interessa pelo médico que o assiste – Dr. Google à parte- e pode expressar sua vontade, aliás, o princípio da autonomia, embora direito, o obriga a se expressar num Sim ou num Não perante a recomendação médica. O paciente integra o que pode ser aplicado com sua avaliação pessoal se quer e se deve se submeter. O médico não deixa de aplicar a mesma tríade que reúne inteligível e sentimento, ou seja, suas recomendações – e eventuais adaptações- passam pelo filtro do devo, posso, quero.
Em percentual expressivo de casos, o diálogo médico-paciente sustenta um vaivém de (não)quero/(não)posso/não devo no processo de consentimento. Suponha um cadeado com seis letras de senha, cada casa terá um S – por exemplo, Sim eu quero- ou um N – por exemplo, Não devo-, as três primeiras para o paciente e as demais para o médico. O número de combinações é 128! Os pensamentos são nômades, correm de um aspecto para outro, provocam hesitações e obstinações. Médico e paciente não estão isolados, ou seja, pela intradependência e pela interdependência há muita chance do desenvolvimento de ajustes para “abrir o cadeado do consentimento”, que “fecha” inicialmente a aplicação da recomendação.