Apreciações sobre inter-relações entre benefício e malefício em coesão num método ganham proveito pedagógico na parábola acerca do segundo mal – no caso a adversidade em relação à doença como primeiro mal-, formulada por Arthur Schopenhauer (1788-1860):
“… Em um gelado dia de inverno, os membros da sociedade de porcos-espinhos se juntaram para obter calor e não morrer de frio. Mas logo sentiram os espinhos dos outros e tiveram de tomar distância. Quando a necessidade de se aquecerem os fez voltarem a juntar-se, se repetiu aquele segundo mal, e assim se viram entre ambas as desgraças, até que encontraram um distanciamento moderado que lhes permitia passar o melhor possível…”.
As analogias do frio com a doença, da terapêutica com a obtenção do calor, do espinho com a reação adversa e da participação ativa do médico prescritor com “voltarem a juntar” conectam-se com o efeito bula.
De quebra, articulam-se com a noção que só deve ser prescrito o de fato útil e eficaz para a circunstância clínica, pois qualquer método “inocente” tem sua diferença maléfica. No meu livro Iatrogenia, a Medicina e o médico, a ênfase editorial é a sustentabilidade do fazer o bem clínico melhor para o paciente.
A parábola de Schopenhauer serve ademais para sustentar explicações do porque pacientes dispensam o exercício do direito à autonomia, pelo menos no aspecto macro da recomendação, fundamentados por um senso de laços de crédito/familiaridade/segurança no médico/instituição.
A minha experiência num Serviço setorizado- Unidade Clínica de Valvopatia – no InCor reforça que, em geral, quando o paciente sente-se membro de uma comunidade – todos interligados pela necessidade igual do “calor” terapêutico específico-, há redução da individuação dos “espinhos”. Facilita ao médico transferir para os pacientes assim agrupados sua proposição de beneficência embora sem dispensar referências ao pontiagudo dos espinhos. É interessante como a sala de espera do ambulatório constrói uma identidade de grupo, vale dizer, uma reverberação das explicações e aproximação ao modo médico de pensar.
Na rotina da indicação cirúrgica da valvopatia pelo Serviço, a orientação dominante era o médico cumprir uma função de bula e dar uma visão panorâmica do por vir, necessário e possível, objetivando construir um distanciamento mental moderado das contraposições do bem e do mal.