Platão (428 ac.-347 ac) e Hipócrates (460 ac-370 ac) tornaram-se imortais com 23 anos de diferença satisfazendo o critério maior para a imortalidade: falecer. Um pouco diferente do que acontece na nossa Academia Brasileira de Letras onde os membros são imortais somente até a homenagem in memoriam na Sessão da Saudade.
Recentemente, Platão e Hipócrates foram flagrados numa beira do leito do Hospital Brasileiro Luiz Décourt, conversando, pasmem, em português e sem sotaque, coisa da preservação de suas biografias nos vários idiomas mundiais. Falavam sobre ética e moral. Pareciam muito entusiasmados com o neologismo Bioética do século XX que, percebia-se, gostariam de ter formulado, mas reconheciam que era impossível sem a modernidade dos benefícios e malefícios. Sem nenhuma expressão de inveja, admiravam o teólogo alemão Paul Max Fritz Jahr (1895-1953) que em 1927 criou o termo Bioética e o bioquímo estadunidense Van Rensselaer Potter (1911-2001) que assumiu a paternidade em 1971.
Platão estava com um anel na palma da mão e Hipócrates mostrava-se curioso.
– Hipócrates, reconhece este anel?
– Claro, Platão, não é tão bonito quanto o da formatura do médico com uma vistosa esmeralda, mas li sobre ele na República, você estava inspirado quando escreveu.
– Pois é, um trabalhão, não era fácil as mãos acompanharem o meu raciocínio, hoje com o computador…
– O que é isso Platão, naquela época não tinha os eletrônicos para distrair nossos pensamentos.
-É verdade, os filósofos gregos pensavam muito, mas, você sabe o nome deste anel?
-Anel de Giges.
-Corretíssimo! 26 séculos sem nenhum sinal de Alzheimer, parabéns Hipócrates, a imortalidade deve estar permitindo uma ótima qualidade de vida.
-Tem razão, Platão, como Pai da Medicina me ocupo com os milhares de médicos recém-formados, afinal, são meus filhos que juram não me esquecer.
– Digamos que é uma visão algo romântica, mas deixa para lá, o que você sabe deste anel de Giges?
– Como você escreveu, Platão, Giges era um pastor, no caminho para uma reunião, o destino fez ele encontrar um anel de ouro num cadáver de um gigante e logo descobriu que virando o anel para baixo no dedo, ele Giges ficava invisível.
-E…
-Giges se sentiu todo-poderoso no anonimato e mandou às favas os bons costumes e as leis, tornou-se um mau caráter.
-O que quis mostrar é que os homens não têm força moral para resistir a suas tentações quando não podem ser pegos com a boca na botija.
-Você acha mesmo, Platão?
-Tenho certeza Hipócrates, pensei muito sobre liberdade e castigo. Se não sou pego na infração, porque a culpa?
-É, se Adão e Eva estivessem entre quatro paredes…
-Foram ingênuos… Em pleno jardim? Nada platônico.
-Quer dizer que você não valoriza o medo, a honestidade, um contrato não escrito, o tal do fio de bigode?
-O que eu penso é que a justiça não faz os justos, são os justos que fazem a justiça.
-Os médicos não se encaixam neste seu estereótipo.
-Impressão sua, aliás corporativismo.
-Platão, a sua imortalidade dispensa ter contato com médicos, você não os conhece.
-Está bem, então como você explica o caput É vedado ao médico nos artigos do Código de Ética Médica? Pelo que sei, até o anterior de 1988 o texto era afirmativo, não proibitivo.
-Os médicos entendem a responsabilidade profissional como Estou ciente que estou fazendo isso.
–Você pode ter razão Hipócrates, mas são os próprios médicos que fazem o Código de Ética que entenderam que deveria prevalecer a deontologia e não apenas confiar nas virtudes de cada um.
-Normas são necessárias, em qualquer profissão há sempre uma meia dúzia de eticopatas pairando por aí.
-Ah, agora estamos nos entendendo, vocês médicos tiveram receio que alguns colegas encontrem o anel de Giges e aí tacaram uma placa bem visível: É vedado ser antiético!
-Entendo o simbolismo, mas na verdade Platão, a Bioética cuida disso.
-Como assim?
-A Bioética fez uma adaptação e a invisibilidade indesejada é a do paciente para o médico, por isso, a Bioética destaca o princípio da autonomia.
-Sim, o consentimento livre e esclarecido.
-Exatamente, se algum médico puser o seu anel de formatura com a esmeralda para baixo e não perceber que está cuidando de um ser humano, não se pode eliminar algum risco de ele achar que tem o direito de se comportar como o Giges.
– Que bom que nos alinhamos Hipócrates.
– Concordo que pelo abuso, precisa haver regras para o uso. Mas creia, Platão, a quase totalidade dos médicos pratica naturalmente a prudência, a boa-fé, a tolerância, grandes virtudes! Mas, claro, há alguns que…
-Hipócrates, me diga, qual é o número limite para estes alguns que você falou para manter a maioria?
-Platão, você tocou no paradoxo de sorites, assunto para outro dia e por falar nisso vamos ligar para o Eubulides de Mileto? Vi no Instagram dele que bolou um novo paradoxo. Outro dia ele estava na televisão explicando o quanto alguém deve subtrair dos cofres públicos para poder ser chamado de corrupto. Suas conclusões basearam-se numa grande casuística.
-Boa ideia, mas só para terminar, eu não me preocupo com alguém achar-se invisível, o meu alerta é que todos podem possuir um anel de Giges para virar e, pelo que tenho visto, certas pessoas nunca mais desviraram no dedo.
– Concordo!
-Por falar nisso, Hipócrates, vejo que você tem um pedacinho de papel por baixo do seu anel de formatura, é receio que ele possa virar?
-Platão, nenhuma memória resiste a 26 séculos… É para me lembrar que logo mais tenho uma reunião com o Asclépio, a Hígia e a Panaceia, foi convocada pelo Apolo.
-Reunião no Olimpo?
-Sim, o acesso melhorou, inauguraram um teleférico.
-Ouvi falar.
-Estou meio ansioso, vira e mexe o Apolo quer impor umas atualizações para o juramento, mas eu acho que não precisa, me incomoda.
-Hipócrates, se você quiser, posso lhe emprestar o anel de Giges…