820- O paternalismo, a gemelaridade e o guarda-chuva

Significados de mesma palavra dependem do contexto. Há um vazio dentro de mim que justifica o vazio daquelas garrafas na mesa do bar. O sujeito não está totalmente oco, só pele, como estão os vasilhames sem nenhum conteúdo.

Transposições de significados desde a sociedade podem corromper o pensamento na beira do leito. Por isso, paternalismo médico tem tido passagens frequentes pela repressão ética e, na medida do possível, a Bioética da beira do leito tem se esforçado para providenciar o seu direito à defesa no juízo do exercício da medicina.

O termo  paternalismo derivado de uma justificável representação de autoridade do pai e suas responsabilidades com o filho incapaz tornou-se uma descabida heteronomia de proteger uma pessoa de si mesma, embora capaz.

A Bioética da Beira do leito entende que há razões fortes no sentido da autenticidade para o paternalismo na beira do leito, quem sabe renomeado para descolar de um mau conceito:

a) O paternalismo na beira do leito é ético na iminência de morte evitável quando, então, pela emergência, fica legitimada a autoridade do médico para interferir na liberdade do paciente; o médico está autorizado a decidir pelo paciente e empenhar-se em evitar a perda da vida e seus ricochetes danosos para o entorno familiar, profissional e social do paciente;

b) O sentido de paternalismo – amparo ou anteparo (do médico) para o bem de outrem (do paciente) – na beira do leito não prejudica a decisão por si próprio deste outrem, já que este é quem dá o consentimento – ou não;

c) Coma com qualidade, faça exercícios, não fume, resguarde-se do estresse, faça check-up, proteja os circunstantes do seu espirro, seja prudente no trânsito, escove os dentes, tome banho diariamente são recomendações paternais no lar e… paternalistas na beira do leito, o objetivo educativo é semelhante, o que muda é a liberdade de cumprimento;

d) A adjetivação do paternalismo em brando e forte em função de presença ou ausência de coerção e de proibição já foi um primeiro passo de descolamento do sentido negativo mostrando que como gemelaridades univitelinas apresenta mesmo DNA, impressões digitais diferentes, vida própria e distinção por nome diferente.

A chuva que bate na janela inspira-me um reforço da ideia. Usa-se o guarda-chuva nas várias intensidades de chuva  – garoa, tempestade- e, com o mesmo nome para proteção do sol, mas somente do excessivo. E aí guarda-chuva pode ser chamado, mais apropriadamente, de sombrinha. Guarda-sol ficou para a praia. 

Não há contradição quando o médico ao longo do atendimento aplica heteronomia (A) e respeita o direito do paciente à autonomia (não-A) de acordo com a ordem ética da circunstância. Resolvida a emergência  (A), a situação não-A pode prevalecer e vice-versa.  Se passada a chuva, o guarda-chuva continua útil para o sol excessivo, agora chamado de sombrinha, é de se admitir que o paternalismo- abrandado- possa também persistir com alguma utilidade.

O paternalismo brando não é um estigma, não é antônimo de autonomia, pelo contrário, é matéria-prima técnica para qualificar o conteúdo da voz ativa do paciente. O bom uso da atenção às necessidades do paciente não deve ser evitado pelo risco de um juízo de abuso de autoridade.

Pensamos que é bem-vinda uma renomeação do paternalismo brando por um termo que possa facilitar enxergar ato de solidariedade quando o médico reitera ao paciente relutante o valor de recomendações aplicáveis. Contribuiria para abrir a mente e fechar o preconceito.

A Bioética da Beira do leito entende que o paternalismo brando favorece a legitimidade do consentimento  – ou não- pelo paciente e dá valor integrativo entre conexão médico-paciente, tecnociência e humanismo. Quanto às críticas, afinal quem está na chuva sabe que pode se molhar…