Eu nasci em plena segunda grande guerra mundial e só várias décadas depois percebo mais realisticamente como deve ter sido terrível a vida na iminência recorrente de um bombardeio -agora de vírus.
Nosso cérebro tem uma plasticidade e na rota de adaptações à pandemia todos se vêem de alguma forma pensando dentro e fora da caixa. Os mananciais criativos energizam-se, questionamentos despertam a imaginação.
Há algumas particularidades em relação aos profissionais da saúde. Ao mesmo tempo em que são merecidamente aplaudidos pelas habilidades operacionais, eles devem persistir cônscios da enorme limitação terapêutica sobre Virologia e do imperativo ético de respeitar o norte das evidências tecnocientíficas. Uma conotação de heroismo no elogio público e um forte controle de qualquer sentido de heroica em conduta ante o desespero.
Pensar fora da caixa é essencial para a descoberta de novas estratégias, contudo, desde que ciente do paradoxo da coragem criativa comprometer-se com eventuais preenchimentos beneficentes dos vazios e ao mesmo tempo manter ativos os filtros da dúvida acerca de danos.
A experiência possibilitada pelo encontro da ideia de ficar gravemente doente com a premência da redução do risco de contágio é interruptor que acende a criatividade. Sua missão é infiltrar-se nos meandros obscuros da influência mútua que os encontros provocam.
Aí está a quarentena social. Sob a óptica da Bioética, trata-se da aplicação do princípio da beneficência. Estima-se que seja útil e eficaz para o objetivo de reduzir o contágio. Diferente do isolamento de pacientes em hospital, é de abrangência coletiva. Razão para a preocupação com a não maleficência, ou seja, com o grau de iatrogenia social que eventualmente possa provocar. Se bula houvesse da quarentena social, seriam algumas linhas sob o item reações adversas e, certamente sob condições sociais normais, a reação individual mais provável seria recusar-se ao uso. Como no hospital, na quarentena social, o paciente não tem acesso à bula como quando está com a caixa na mão e recebe os comprimidos com as informações que são heteronomicamente julgadas suficientes. A Bioética incomoda-se.
O princípio da beneficência foca num relacionamento onde a mudança de uma parte provoca mudança noutra parte. A farmacologia é ilustrativa. Muda-se o nível de concentração de antibiótico no sangue e resulta uma mudança na capacidade patogênica da colonização por bactéria que provoca uma futura eliminação do encontro. Em contrapartida, a bactéria tem meios para se tornar resistente para manter sua missão. Ou seja, o ser humano utiliza a inteligência natural para aplicar conscientemente os recursos disponíveis e o agente infeccioso vale-se da mutação para reagir, ambos objetivando a sobrevivência. Causas e consequências nos encontros no entorno da medicina provocam, invariavelmente, movimentos e contramovimentos na ordem das coisas numa dinâmica incessante entre benefícios e malefícios.
No caso da quarentena social, de modo peculiar, a beneficência não está no encontro direto, mas na sua evitação. É situação análoga à beneficência da prevenção pela eliminação de maus hábitos. Por este não encontro, pela mudança da rotina do ser humano consciente da utilidade e eficácia do isolamento social, provoca-se – é o objetivo- a mudança do poder de contágio do novo vírus que é restrita a uma distância íntima, no máximo a pessoal por aproximação. Isolamento humano de um lado e mutação genética do vírus de outro como expressões da dramaticidade da circunstância.
O encontro ou o não encontro criativos expõem o talento, comumente, de modo proporcional à intensidade da experiência. É neste ponto que aflora um avesso da quarentena social, o desenvolvimento da imunidade natural pela criatividade do encontro com o vírus. Pressupõe-se que a criatividade humana na sua alta forma de gerar anticorpos específicos seja temporalmente superior à capacidade do vírus em responder com mutação. Uma decorrência da imunização natural é a obliqualização da quarentena social, ou seja, uma progressiva verticalização da horizontalidade. Desafio para a criatividade alinhada a técnicas de avaliação de dados e fatos que não param de se movimentar, os surfistas conhecem bem.
Forte aspecto é que o encontro temido gera ansiedade (futuro) que na pandemia atual articula-se com a evitação da culpa (passado) de ser vetor propagador. Ouve-se que nunca houve o mesmo temor em situações de outras morbidades com letalidade expressiva. É verdade. Talvez porque esta pandemia tenha vindo abraçada num mandamento de intensiva assistência ventilatória invasiva, numa voz de comando de uso de uma concentração de ventiladores simultâneos além das possibilidades do sistema de saúde.
As autoridades têm responsabilidade desta gestão e investidas das melhores intenções de dar forma, razão e lógica ao princípio da beneficência entendem que o encontro da gravidade da virose com a capacidade operacional do sistema de saúde gerará um nível de atenção e de tensão que impõe ter a máxima garantia para que não haja a fermentação da mistanásia.
Infelizmente, nunca houve discussões mais profundas sobre pandemias visando ao treinamento, à vigilância, à antecipação, à inspiração para quando cada conhecimento/habilidade/atitude isolados precisassem ser juntados rapida e ansiosamente, sem a liberdade para pausas reflexivas entre o estímulo e a reação que possibilitem a criação roteirizada das estratégias mais esperançosas.
Certamente, a Bioética passará a se interessar pelo tema com concentração no princípio da beneficência.