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800- Quarentena exige ginástica de neurônios

O número de ordem 800 é redondo, mas o artigo é sobre arestas que machucam mas não fazem perder a coragem- prosseguir apesar do medo.

O biólogo evolucionário Jared Diamond (nascido em 1937) nos ensina que os bandos – uma família ampliada de caçadores-coletores nômades- foram sucedidos por tribos, assentamentos com famílias sem relação de parentesco que tinham de viver juntas segundo laços de afinidade. Um deles desenvolveu-se como dever cívico, o que inclui submeter-se a sacrifícios em prol dos outros.

Numa pandemia, o dever cívico  alinhado com obrigações de não infectar o outro, não colocar alguém em situação de risco, respeitar ordens de autoridades e exercer profissionalismo (profissionais da saúde, por exemplo) é citado como motivação para afastamento social e quarentena.

Há evidências que o novo coronavírus sofreu mutações após ter chegado ao Brasil, o que reforça o ponto de vista da necessidade de isolamento social em função da gravidade e da capacidade de atenção do sistema de saúde e traz mais desafios sobre os benefícios de uma mais precoce imunização natural.

É de supor que a imposição de restrição à autonomia de pessoas saudáveis provoque efeitos colaterais sobre a autoestima e a produtividade associados a certo grau de empobrecimento econômico e cultural. Corpo e mente passam a ter contraposições, neurônios e músculos resultam violentados em suas potencialidades, fontes de abalos na saúde física e mental. A pandemia, apesar de algumas prioridades, interessa a todas as 55 especialidades médicas.

O componente voluntário da sujeição tende a craquelar desfazendo a maquiagem que cada um precisa se aplicar,  assim expondo outras obrigações e decorrentes questionamentos aos motivos originais. Preocupações transbordam  no coquetel de sentimentos.

O termo quarentena é de natureza numérica e ao longo dos tempos extrapolou a origem, passou a conviver com  novos períodos de tempo e adquiriu o potencial de renovável, atributo inexistente na conotação ao purpério. Pela condição humana, há um inevitável prazo de validade. As fases de compensção são rápidas.

O período de quarentena social em pandemias não está definido por evidências científicas e a indefinição no ar – contaminado pelo novo vírus- influencia a capacidade de absorção de cada um de nós como a abertura de Anna Karenina de Leon Tolstoi (1828-1910): Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz a sua maneira. Agregue-se de reagir ao pandemônio pandêmico.

A orientação para quarentena social com a interpretação pessoal que se descumprir o bicho pega e se cumprir o bicho some transcende a uma escolha que temos fazer entre liberdade e saúde, como acontece no tabagismo. Ela requer fundamentos teóricos e roteiros práticos para justificar – firmar o que significa- e dar legitimidade – expor como deve ser objetivada.

Sem legitimidade, a justificativa pode esvaziar. A quarentena social pode ser justificada como contenção do contágio preocupante, mas a legitimidade pode ser alicerçada na chamada horizontal – indiscriminada- ou na chamada vertical – seletiva, com seu calcanhar de Aquiles na convivência em mesmo domicílio das gerações que podem sair e das que devem se manter isoladas. É essencial evitar que o excesso de falta do que fazer entre quatro paredes desemboque numa visão que os sustentáculos sanitários da quarentena estão firmemente fincados em… areia movediça.

A providência passa por filtros científicos e legais, contudo, a literatura parece concordar com a ausência de evidências robustas a respeito. Há a expansão da relevância do aspecto moral quanto ao conceito de um efeito recíproco, ou seja, mutualidade entre o impacto da quarentena social na pessoa – o positivo de não adoecer e o negativo da mudança da rotina com inevitáveis perdas- e o efeito no contágio pelo vírus – contenção da sua estratégia de transformar sintomas em meios de sobrevivência. Algo como a disposição recíproca entre cloreto de sódio e água, uma figura que a Bioética da Beira do leito adota para a compreensão da beneficência. O sal se dispõe a ser diluído e a água se dispõe a diluir, desde que líquida e respeitado o nível de saturação. Se gelo ou vapor d´água, não há razão para esperar algum efeito.

A quarentena social é uma questão de Saúde pública e por isso a adesão à reciprocidade de não se tornar um doente/afastar a doença de muitos requer um olhar nada vesgo das autoridades que integre dose quantum satis de restrições à pessoa e dose a mais proporcional possível de meios de apoio para a manutenção do cumprimento das obrigações pessoais e profissionais. Responsabilidade moral da adesão ao confinamento no plano individual pela atenção recebida da Saúde Pública e da retribuição pelas autoridades ao cumprimento pelo maior amparo possível às obrigações morais de cada um porque a grande maioria da população não é um urso polar preparado para hibernar por cerca de seis meses -inclusive porque urso em cativeiro não hiberna.

O compliance com a quarentena social é tempo-dependente, provoca oscilações e contradições até porque tem um componente de voluntário, razão para que as medidas de suporte coletivo precisam ser viabilizadas pelas autoridades desde a motivação inicial e por todo o período em que haverá um efeito gangorra entre forças de re-motivações e níveis de satisfação com os suportes, o que está alinhado com confiança. Limites da interação interpessoal e social representada pela solidariedade existem e falhas na cooperação com decorrências legais e políticas não podem ser evitadas apenas pela intenção moral.

O umbigo é nossa primeira cicatriz e símbolo do nosso ego e da dependência de cada um. A solidariedade social faz nos desviarmos do significado de o próprio umbigo. Otimismo e paciência são digestivos essenciais para a dispéptica quarentena social, contudo, insuficientes para contrabalançar eventuais exacerbações dos compromissos genéticos das famílias além da capacidade de absorção de motivações.

Se nós médicos aprendemos a respeitar a medicina baseada em evidências, esta experiência com a quarentena social é oportunidade para conhecer melhor as interfaces sociais da medicina pelo mundo real baseado em evidências. Repercussões que qual bumerangue voltam também sobre o médico emparedado entre o simbolismo do juramento de Hipócrates (460 ac-370 ac) e o próprio julgamento sobre vir a ser vetor etiopatogênico para si, familiares e pacientes.

Artigos sobre pandemia são unânimes em expor a falta de discussão e de planejamentos para o que todos afirmam: pandemias se repetem periodicamente. As muitas dificuldades de prever soluções talvez possa justificar o desestímulo. Evitar e se preparar para combater são tarefas difíceis de uma simultaneidade. Por encerrar dilemas, assim que o Brasil tiver alta, a Bioética  brasileira precisa incluir o tema em suas prioridades transdisciplinares.

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