Estou na véspera? Para onde eu escapo? Quais são minhas chances? Me conformo com esta variante forçada de um ano sabático?
Ocorre uma tempestade de pensamentos e sentimentos em meio ao perigo imposto pela poluição biológica sui generis do ar. Que pena que oxigênio e nitrogênio não podem cooperar com seus bilhões humanos de consumidores, bem que o dióxido de carbono poderia aplicar o efeito narcose no novo vírus.
Devaneios e respiração à parte, a atual pandemia do novo coronavírus nutre o encontro da consciência e dos valores individuais com circunstâncias que impactam em todos- ouvi que Convid-19 é doença democrática, grande consolo!
E por falar em liberdade e soberania do povo, afloram em decorrência dos transtornos inúmeras questões relacionadas a interfaces entre liberdade e causalidade (nexo entre causa e efeito). Expansões e limitações atingem a todos. Ao hospital também. Hipertrofia-se a figura do paciente e do profissional da saúde e atrofia-se a de circunstantes. De repente, certos pacientes não são bem-vindos, não porque assim se deseja, mas por uma questão de prioridade operacional e de recursos. A ética profissional engole seco! O estado de emergência tem suas razões.
Abro um pequeno parêntesis para compartilhar com o bioamigo que tenho escutado sugestões inteligentes para redução do fluxo de pacientes no hospital que seriam consideradas há pouquíssimas semanas irremediavelmente antiéticas. Façamos votos que o arejamento de certos conceitos possa viabilizar movimentos de mudanças no nível de rigidez em relação a certas rotinas arraigadas após a regressão da pandemia. Reforço para o conceito que pontos de vista não têm uma verdade absoluta, têm valor relativo.
Uma primeira metanálise com 1995 pacientes de 1 de janeiro a 7 de fevereiro de 2020 que concluiu por 7% – 95%CI (0.04,0.10)- de letalidade https://onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1002/jmv.25757 ilustra por si só a necessidade de ajustes agressivos no cotidiano pandêmico. No mínimo, é essencial achatar a curva de incidência de casos para compatibilizar demanda e capacidade de atendimento do sistema de saúde.
Pelos conhecimentos da História e análise do que tem sido relatado em outros países, a ênfase na divulgação que a imensa maioria das pessoas terá infecção discreta e até mesmo desapercebida tem o interesse da Bioética. Se por um lado o objetivo antipânico justifica, por outro lado, é areia movediça. A progressão geométrica do risco de contaminação exige ressaltar a responsabilidade de cada um com o potencial de gravidade. Um prognóstico favorável no geral não invalida o máximo de atenção com a proporção do desfavorável, aliás, tradição da medicina.
O primeiro fato – o surgimento do novo coronavírus supostamente a partir de morcegos, aliás, hora de recordar que o sarampo veio de bovinos como possível mutação do agente da peste bovina e a coqueluche e a gripe de porcos e cães- desencadeou o segundo fato – a dimensão preocupante- e daí não mais parou de condicionar desdobramentos que afetam a convivência.
Neste efeito dominó com múltiplos cenários clínicos, decisões heterogêneas podem conviver numa determinada área geográfica. Dengue, zika e chikungunya são exemplos marcantes e recentes.
Se o Brasil se preocupa endemicamente com o Aedes aegypti, como já se preocupou mais com o Triatoma infestans pela doença de Chagas, às primeiras notícias da China passou a se preocupar com outras asas vetores, a do avião, a carona globalizada. Ocasião para lembrar que a geopolítica da Terra exige pensar em ética em nível universal, inclusive nos aspectos da saúde. Se é verdade que Alberto Santos Dumont (1873-1932) que concretizou o sonho de Ícaro teve depressão e se suicidou por causa do uso do avião em guerra, seria mais uma causa extemporânea.
Cai bem para o pandemônio pandêmico atual a mão que afaga é a mesma que apedreja do soneto Versos Íntimos de Augusto dos Anjos (1884-1914), que assinala como tudo pode mudar rapidamente. De curioso consta da sua biografia do poeta que faleceu de pneumonia após uma gripe prolongada.