O uso de fármacos beneficia o prognóstico. O uso de fármacos acresce adversidades evolutivas. As duas afirmações são válidas e ajustam-se aos princípios da beneficência e da não maleficência sustentados pela Bioética. Endossa Oscar Wilde (1854-1900): Verdades são raramente puras e nunca simples.
Questão recorrente é o dever do médico prescritor de comunicar ao paciente que o comprimido a ser ingerido é na verdade um bastão com uma extremidade benéfica e outra maléfica e que somente após a tomada que vamos saber dos efeitos de cada extremidade, ter certeza sobre o que foi vantagem e desvantagem na atenção às necessidades da saúde. Recentemente, as quinolonas, após anos de uso com evidentes benefícios anti-infecciosos, foram alvo de alertas sobre gravidade de adversidades, inclusive com proibição para o ácido nalidíxico. A razão é a observação que mitocôndrias de pacientes fluoroquinolados ficam sob risco de grave comprometimento funcional.
Outro aspecto é a eventual generosidade prescritiva que muitos pacientes gostariam de ter do médico que pela consciência profissional privilegia a segurança biológica e, por isso, desagrada ao paciente. Ademais a automedicação é frequente. Já fazem alguns séculos que a necessidade do homem por conforto, utilidade e proteção foi destacada por Sir Francis Bacon (1561-1626), o fundador da ciência moderna. Fármacos preenchem a tríade.
Mais um aspecto é a situação inversa, onde o paciente deixa de seguir a recomendação prescritiva porque se assusta com a relação de reações adversas que lê na bula do medicamento. Pudera! Por exemplo, a bula do synthroid registra entre as reações adversas o infarto do miocárdio e a parada cardíaca. Impressionaria até mesmo Hakaru Hashimoto (1881-1934), o epônimo da tiroidite linfocítica crônica.
A complexidade do organismo humano, especialmente quando se aprecia pelo ângulo molecular, pela participação de receptores e pelas peculiaridades em função da genética, tem causado distinções de comportamentos das pessoas, cada um deles justificados a sua maneira- evito tomar remédio/nunca deixo de tomar minhas vitaminas/não como tais alimentos/estou protegido pelas frutas com vitamina C/não acredito em vacina/sou rigoroso com o calendário de vacinas dos meus filhos.
Por outro lado, fungo provoca micoses, fungo nos dá a penicilina. Bactérias próprias translocadas causam infecção, bactérias autóctones protegem de infeccção. Varfarina já foi um raticida, varfarina evita tromboembolismo. É difícil haver única leitura para cada circunstância, particulamente, quando se trata de questões de saúde e aplicação de tecnociência quando prevalece a inspiração de Plínio, o Velho (23-79): a incerteza é a única certeza.
Prescrever ou não prescrever, tomar ou não tomar o prescrito embutem a perspectiva do desconhecido e do imprevisível ante, não somente, às indeterminações da medicina em geral e da farmacologia em particular, como também à memória sobre surpresas quanto ao risco de dano de um fármaco liberado para uso assistencial. Por mais que haja cautela desde a indicação judiciosa até o respeitoso cumprimento da forma de uso, a disposição recíproca entre agente e atuado não permite garantia de controle.
Não faltam motivos para vigilância diuturna pelas autoridades. Medicamentos que foram lançados com entusiasmo de utilidade foram retirados do mercado pelas adversidades – Rofecoxib (Vioxx). Medicamentos pouco eficientes tiveram a reação colateral tornada a indicação principal – Minoxidil-. Medicamentos podem sofrer contaminação na fabricação – presença de nitrosamina noticiada em comprimidos de ranitidina, losartana e valsartana. A fiscalização permanente sabe que a diferença entre remédio e veneno não é apenas a dose.
Esta discussão era impossível antes de cerca de 100 anos, ou seja, demorou séculos para haver a preocupação mais direta com adversidades a benefícios disponibilizados desde que Hipócrates (460ac-370ac) formulou o preceito ético do primum non nocere. Depois que começou, acelerou e se transformou numa responsabilidade da beira do leito contemporânea.
Estamos, justamente, comentando sobre danos possíveis de tratamentos existentes, quando vivenciamos uma morbidade global pelo novo coronavirus from China com escalas que a medicina não dispõe de tratamento específico. Foca-se, então, na prevenção da contaminação com medidas de bom senso e na assistência a repercussões clínicas pela rotina já organizada, enquanto se desenvolve um árduo trabalho para ampliar cunho científico ao conhecimento e às providências.
Hora de relembrar que todos exigimos pressa para um tema que sempre caminhou lento: a) a primeira referência a seres vivos invisíveis que transmitiriam doenças pelos alimentos e pelo ar foi feita no século 1 ac por Marcus Terentius Varro (116-27 a.C.); b) os vírus foram identificados cerca de 20 séculos depois, em 1898, antes do advento do microscópio eletrônico por Martinus Wilhelm Beijerinck (1851-1931); c) a assepsia ganhou respaldo científico no decorrer do século XIX.
Mas, a capacitação tecnocientífica que se tem neste século XXI sustentada pelas inteligências natural e artificial vai rapidamente aumentando a abrangência e a profundidade sobre a morbidade do Covid-19, inclusive, em aspectos de alto interesse para a Bioética da Beira do leito.
Uma cogitação traz uma conotação pedagógica. Há indícios https://www.bmj.com/content/368/bmj.m810/rr-2, embora não tenha havido uma investigação sistematizada, que medicamentos usados para controle da hipertensão arterial sistêmica poderiam funcionar como verdadeiros cavalos de Troia para facilitar a entrada do novo coronavirus em células humanas – inibidores da enzima de conversão da angiotensina (lisinopril, por exemplo) e bloqueadores de receptores da angiotensina (losartana, por exemplo) aumentariam a expressão do receptor ACE2 – uma proteína que participa na produção de angiotensina- e facilitariam o novo vírus introduzir seu material genético numa célula enganada para produzir mais cópias de RNA viral e, portanto, mais carga infectante. A consequência presumida é que pessoas com doenças cardíacas em uso dos medicamentos poderiam estar sob maior risco de gravidade da virose.
Neste contexto vale lembrar a visão apresentada pelo biólogo evolucionário Jared Diamond (nascido em 1937) no livro Armas, Germes e Aço que os microorganismos não desejam matar o hospedeiro porque seria o próprio suicídio, o que eles desejam são os sintomas para se propagarem e, assim, preservar a espécie – razão para antagonizar com os cuidados com partículas oriundas do trato respiratório, espirro, tosse, ou seja, o que para nós é sintoma, para o microbio é estratégia: “… Um micróbio que mata seu hospedeiro, mata a si mesmo… Os sintomas da doença representam os mecanismos pelos quais o micróbio inteligente modifica nossos corpos ou nosso comportamento de modo que sejamos recrutados para a transmissão e perpetuação da espécie… Mais enérgica é a estratégia usada por micróbios para acelerar a transmissão que induz a vítima a tossir ou a espirrar… Há aqueles que pegam carona num inseto que se encarrega de achar um novo hospedeiro… O mais sujo de todos os truques de transmissão passiva é a passagem pela placenta para o feto…”.
A Bioética da Beira do leito traz a questão: Em função do princípio da não maleficência, esta cogitação sobre fármacos usados habitualmente para controle de doença importante publicada com destaque por revista de alto impacto já preenche critério para acionar o imperativo de consciência do médico prescritor a avisar ao paciente sobre este risco em fase da atual pandemia?
Ilustra-se, pois, como a comunicação na beira do leito é influenciada pela ausência de fronteiras bem definidas entre o racional e o emocional. Quem decide a decisão de informar ou não? O costume é aguardar uma posição heteronômica de credibilidade que represente um grupo de profissionais. Entretanto, a visão crítica autonômica de cada médico é uma realidade da eticidade do comprometimento profissional. Assim, você, bioamigo, na solidão do alto da sua responsabilidade na beira do leito deve se sentir livre para refletir que enquanto o sigilo profissional existe a respeito de dados e fatos do paciente, ele inexiste em relação à medicina, inclusive sobre aflitivas indeterminações.
A virose passará, a importância dos receptores considerados irá para o acervo da medicina e sustentará outras avaliações sobre não maleficência farmacológica e você bioamigo fará deste momento falo ou não falo, mais uma pecinha do interminável quebra-cabeça sobre as responsabilidades do médico na comunicação sobre a prevenção de iatrogenia.
Uma resposta
Li, reli, voltei a ler. Onde estava a conexão do título com o conteúdo? Encontrei há pouco. Nesta conexão um mundo de fundamentos: abertura, tolerância, prudência, zelo, lógica do terceiro, beneficência, não maleficência, autonomia e imperativo de consciência.