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PUBLICAÇÕES DESDE 2014

685- Afaste da beira do leito o cale-se (Parte 1)

A beira do leito ouve vozes. Precisa ouvir vozes. Nenhum traço esquizofrênico. A verbalização sintetiza-se em Eu sou médico e em Eu sou paciente, Nós formamos uma conexão com amplas significações incluindo a conscientização solidária para a atenção às necessidades de saúde.

O bom uso da palavra contribui para que a interpessoalidade da aplicação da medicina afaste-se da violência, porém sem descambar para a apatia. Assim, a beira do leito contemporânea testemunha um poder do médico e um poder do paciente. A afirmação do paciente como sujeito moral, que é ao mesmo tempo sensível – não desejo me internar–  e racional – entendo a necessidade da internação-, consolida-se com os sentidos de liberdade e de dignidade.

As últimas décadas viram a transformação da rigidez na obediência do paciente ao médico numa flexibilização que pode direcionar a sua palavra, qual bambu ao vento, tanto para um extremo de absoluta superposição à recomendação médica, quanto para o extremo oposto de total contraposição. Cada caso tem sua calibragem de adaptações recíprocas que depende muito da comunicação interpessoal.  A  linguagem da beira do leito, seus sequenciamentos, seus modos de pronúncia, seus timings, funciona como uma vacina tríplice: antiviolência, antiapatia e antidesperdício.

Não haveria medicina sem a linguagem – a maior invenção da humanidade segundo alguns estudiosos-, e nem conexão médico-paciente sem o linguajar, a adaptação da linguagem científica para o leigo. O aprendizado médico da linguagem da beira do leito se faz de modo gradual entremeado por surtos e contenções, desde quando o estudante de medicina amplia os contatos com a tecnociência e com o paciente. Evidentemente, não houve mutações genéticas para o desenvolvimento de uma linguagem da beira do leito, mas, pode-se dizer que mutações éticas tem sido responsáveis pela qualidade da comunicação. O médico mudo, introspectivo  dos quadros famosos deu lugar a memes – unidade de informação que circula de cérebro para cérebro sob efeito da memória- com médicos falantes e comunicativos.

Pelo valor do poder comunicativo do ser humano, sinceridade das palavras e efeito das mensagens, há um comportamento que deve ser afastado da beira do leito. Que se afaste o cale-se do processo de tomada de decisão. Tanto o cale-se como ordem interna do médico para si próprio, quanto o uso enfático da interjeição cale-se para negar voz ativa ao paciente.  Hoje, há um preço ético alto a ser pago pela conotação de hipnose da palavra do médico, autômato só produzido pela inteligência artificial.

Abrir a boca, abrir os braços, abrir o coração e abrir a mente podem ter leveza pela ação dos muitos músculos, mas, os neurônios não são tão facilitadores. Simplificam-se as complexidades da conexão médico-paciente-medicina quando médico e paciente conscientizam-se mutuamente pelas captações um do outro e, assim, atapetam os caminhos das tomadas de decisão. Não há a possibilidade de conciliar ética, moral e legalidade na beira do leito sem a exteriorização de perguntas e respostas sobre referenciais tecnocientíficos e humanos.  As potencialidades de benefício e malefício dos métodos a serem considerados precisam estar bem realizadas na mente de ambos antes das efetivas realizações no paciente.

O cale-se é nocivo ao consumo da liberdade de escolha que deve pautar a conexão médico-paciente. Evidentemente, o grau de capacidade para fazer escolhas é variável no geral e em determinado momento, por isso, a reciprocidade em palavras é capital para o exercício da confiança, conciliação e justas expectativas em torno das necessidades de saúde. Pretende-se que as duas vozes – a profissional e a leiga- interajam em busca da harmonia que dá um efeito de coro (compartilhamento) no processo de tomada de decisão.

O desenvolvimento de um tema com o auxílio de metáforas tem alguns óbices. Há sempre um componente que pode criar uma dúvida. No caso, se o coro representa uma harmonia – médico e paciente em consonância-, quem é tem o papel de regente? Se o médico, será um malvisto paternalismo, se o paciente, será um excesso de autonomia, se a medicina, será uma heteronomia insensível ás individualidades. Labirintos existem para amadurecer a capacidade de atingir saídas. Convido o bioamigo a soltar um drone mental para obter imagens de utilidade na circulação pelo labirinto do processo de tomada de decisão onde o Minotauro é uma representação de corpo de uma doença a ser cuidada, cabeça de um ser humano e dentes prontos para o que der e vier.

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