São 90 anos. É o período de tempo que nos separa da implantação do Código de Moral Médica (1929), o primeiro Código de Ética Médica do Brasil, na verdade uma tradução do aprovado no VI Congresso Médico Latino Americano. Ele teve vida curta, mas tem valor histórico para quem se interessa pela dualidade paternalismo/autonomia. Destaco:
Capítulo 12: Preceitos que se recomendam ao publico seguir em beneficio dos enfermos e da harmonia que deve reinar entre o grêmio médico
7º- Os enfermos não devem fatigar o médico com narrações de circunstância e fatos não relacionados com afecção. Portanto, neste ponto, limitar-se- ão a responder em termos precisos às perguntas que se lhe dirijam, sem estender-se em explicações ou comentários que, longe de ilustrar, tendem mais a obscurecer a opinião do medico.
8º- O enfermo deve implícita obediência às prescrições médicas, as quais não lhe é permitido alterar de maneira alguma. Igual regra é aplicada ao regime dietético, ao exercício e qualquer outras indicações higiênicas que o facultativo creia necessário impor-lhe.
Enorme contraste com o atual Art.31: É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas.
Uma missão da Bioética é ampliar o contingente de profissionais da saúde que se interessam em discutir criticamente sobre o respeito ao direito do paciente à autonomia. A formação do médico e a normalização das condutas tendem a um impacto negativo na compreensão do não consentimento pelo paciente, inclusive, por uma visão de colisão com os Art. 32: É vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção,diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente e Art 1º- É vedado ao médico causar dano ao paciente por omissão caracterizável como negligência.
A liberdade de ter voz ativa no processo de tomada de decisão requer rigor com a tecnociência e cuidados com a condição humana para que ocorra mais benefício e menos malefício. É essencial que o decisório no âmbito da conexão médico-paciente preserve a proeminência dos simbolismos da tradição hipocrática, vale dizer numa única palavra: respeito à dignidade da pessoa humana.
É extensa a fronteira entre uma posição liberal-autonômica e uma posição conservadora-paternalista, entre uma visão de proteção e de superproteção, entre uma concepção de uso e abuso, ora há uma continuidade de planície, ora um rio caudaloso, ora abismos entre montanhas. Não faltam, contudo, passagens ocultas, seleções de métodos cogitáveis com única posição enfim apresentada e exposições de forma tendenciosa dos esclarecimentos. A relação de métodos em medicina, entretanto, não se equivale a um menu variado oferecido pelo garçom no restaurante. Não se entrega um quadro de diretriz clínica na mão do paciente para que ele faça sua escolha entre as dimensões de efeito classe I/IIa. O enquadramento em individuação dramatiza a beira do leito.
Estudos indicam que fatores tendentes a atuações paternalistas ou autonômicas podem operar de modo independente uns dos outros e que há forte influência de como acontece a relação, por exemplo, grau de confiança, nível de expectativas e clima de empatia. O reconhecimento do outro, a evitação da despersonalização e o comprometimento com objetivos comuns conduzem o processo de tomada de decisão por um caminho de compatibilidade entre paternalismo brando do profissional da saúde e o direito à autonomia pelo paciente. Há um dinamismo caso a caso para alcançar um desejável equilíbrio entre entendimentos de priorização da autonomia e demais valores éticos. Em outras palavras, a valorização da autonomia não deprecia atitudes de paternalismo brando, o que torna inadmissível a demonização do paternalismo que acontece muito mais como fruto de uma situação de ventriloquismo do que de reflexão própria.
Deve-se ter em mente que há razões históricas para as considerações mutáveis da eticidade na beira do leito. A triagem que elimina opções de métodos assistenciais e a relação de exclusões em projetos de pesquisa clínica são atitudes de paternalismo forte que visam ao respeito à prudência, não por coerção, mas pela ausência de benefício presumido ou de contribuição para objetivos. Entender como proteção ou superproteção tem enorme viés individual, mas parece claro que não há desrespeito à liberdade pessoal do paciente ou do voluntário de pesquisa, temos que considerar que há o imperativo da boa-fé acerca do bem-estar.
A genealogia dos esclarecimentos do profissional da saúde para o paciente inclui noções de probabilidade, a exposição de perspectivas para o bem e para o mal. A superioridade do conhecimento – dever profissional- não pode ser entendida como arrogância do médico pelo excesso de racionalidade, do tipo “… Eu sei, você não sabe…”. Mas, como “… Agora você sabe, o que eu sei…” para o paciente usar como matéria-prima para a compreensão de estratégias e dar plataforma para cotejamento com desejos, preferências, valores e objetivos. Destampar o hermético é complexo, há o risco da abertura de uma caixa de Pandora. Malefícios potenciais podem se realizar e superar benefícios e como aconteceu na mitologia grega, deixa na caixa apenas a esperança.
É sabido que o paciente crônico, portanto experiente, permite uma mais adequada integração entre recomendações do médico e aceitação pessoal pela memória das boas e más experiências, circunstância que dá clareza à pertinência do conceito que paternalismo brando não é antítese do direito à autonomia.
A Bioética da Beira do leito reforça que o direito à autonomia nasceu muito mais pelo abuso do que pelo uso do paternalismo pelo profissional da saúde. Estamos próximos de completar 100 anos de presença de um Código de Ética Médica na beira do leito brasileira. Presumo que esta década faltante terá reviravoltas em relação a qualificações de paternalismo e de autonomia provocadas pela difusão da tecnologia de informação e comunicação, novos dilemas sobre a moralidade na beira do leito, novos desenhos sobre as fronteiras, em meio a um cuidado do biológico por estruturas não biológicas. Dada a maior precisão da organização de dados e fatos, quaisquer fontes de desvios poderão ser mal-vindas e, assim, a possibilidade tangível de teletelas exibirem:
Os enfermos não devem fatigar o robô de branco com narrações de circunstância e fatos não relacionados com afecção. Portanto, neste ponto, limitar-se-ão a responder em termos precisos às perguntas que se lhe dirijam, sem estender-se em explicações ou comentários que, longe de ilustrar, tendem mais a obscurecer a opinião do robô de branco. Ademais, o enfermo deve implícita obediência às prescrições médicas, as quais não lhe é permitido alterar de maneira alguma. Igual regra é aplicada ao regime dietético, ao exercício e qualquer outras indicações higiênicas que o robô de branco creia necessário impor-lhe.