3834

PUBLICAÇÕES DESDE 2014

33-Doutor! O senhor atendeu minha filha?

Duas adolescentes entram no consultório médico. Elas são amigas. A tem 17 anos e veio dar apoio a B de 15 anos. Consulta pelo convênio. Por coincidência, na saída, uma amiga da mãe de A  estava na sala de espera.   A sequencia foi um telefonema para a mãe de A, que interrogou a filha, indignou-se com a atitude da mesma de ter ido e de não querer contar o que aconteceu e não sossegou enquanto  não  revelou “tudo o que sabia” – na verdade apenas que houvera uma consulta- para a mãe de B, claro, por outra coincidência, frequentadora do mesmo cabelereiro, expressando já de antemão a sua solidariedade com a indignição que certamente a ouvinte teria, porque ela teria – “você não sabe o que eu faria”.

Não há informações sobre o que se passou entre a mãe, o pai e B. Mas pelo tom de voz e pelas palavras ditas ao médico, por telefone, dois dias depois da referida consulta, o ambiente familiar deve ter ficado agitadíssimo. O que se soube foi que o irmão de 18 anos de B, quando percebeu o clima hostil, “lembrou” à irmã que eles tinham uma festa para ir e já estavam atrasados, mas foi em vão. Um “ela não vai lugar nenhum” trancou a porta do apartamento, do elevador e da portaria do edifício, tal foi a sua força de determinação. Vizinhos costumam ter boa acuidade auditiva para certas indiscrições.

O médico não era experiente nesta situação, mas foi esperto. Após inteirar-se do assunto, disse ao pai de B que estava em consulta e fez desligar o telefone, avisando à secretária que o bloqueasse.

Mais tarde, o médico foi ler o Código de Ética Médica. Percorreu o capítulo IX que trata do Sigilo profissional e encontrou o artigo 74- É vedado ao médico revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de discenimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente. http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20664:capitulo-ix-sigilo-profissional&catid=9:codigo-de-etica-medica-atual&Itemid=122

Ele rememorou o caso e avaliou que a paciente  era amadurecida, que a ressalva não cabia no caso de B e que não havia nenhuma perspectiva, nem de internação hospitalar, nem de  pensamentos de suicídio.  Assim, convenceu-se que não havia nenhum absurdo em preservar o sigilo médico de B em relação aos seus pais. Ficou curioso e consultou  o Estatuto da infância e da adolescência e entendeu que o artigo 17 – O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais – poderia ser aplicado mas teve dúvidas. http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/caopca/eca_anotado_2013_6ed.pdf

No dia seguinte, recebeu os pais de B que marcaram consulta- pelo Convênio-, um encaixe, ouviu com paciência a torrente de argumentações, sentiu-se, inclusive, aquele espectador de jogo de tenis, olhando sucessiva e rapidamente  ora para o pai, ora para a mãe, que se atropelavam na ansia de obterem do médico o que motivara a consulta da filha. E mais, teve que ouvir do pai que era ele que pagava o convênio e assim era dinheiro dele que estava indo para o bolso do médico.

As entonações variavam conforme eram palavras de exigência ou palavras de preocupação com eventual gravidade da situação clínica da filha.  O médico colocou o art. 74 como escudo, começou mudo e terminou calado, embora não saisse da sua cabeça que tinha uma filha da mesma idade e que não tinha dúvida que sua esposa se estivesse na mesma situação “acabaria com o médico” e torturaria psicologicamente a filha- e provavelmente a ele também.

No fundo, no fundo, o médico ficou numa ambivalência. Se o art. 74 não existisse ou fosse diferente, ele  achou que não se sentiria desconfortável em quebrar o sigilo de B para os pais.  Mas , por outro lado, ponderou que a capacitação para a autonomia deve ser um processo, autonomia progressiva, e não um acontecimento mágico no dia do aniversário em que o menor passa a ser legalmente maior de idade.  Não deixou, porém de perceber-se pensar, mas será que em questões de saúde…

No retorno de B, o médico se esforçou para convencer a menor de idade a conversar com os pais e recebeu uma resposta dúbia. Ele não teve nenhuma informação mais sobre o caso.

Bioamigo, o entendimento de sigilo médico quando se trata de paciente menor de idade não é unanimidade planetária. Há  dados que indicam que a posição brasileira é a mais aceita nos vários países, interessando diagnóstico, terapêutica, prognóstico e intercorrências.  Na posição do médico de intermediário entre o menor de idade e seus pais ou representante legal, solicitar o consentimento destes com cláusula de sigilo médico é inviável porque compromete o esclarecimento que é a sua essência.

Mostro-lhe abaixo colagens da literatura aplicáveis a situações habituais de cuidados ambulatoriais.http://www.altaalegremia.com.ar/Archivos-Website/REVISTA_BIOETICA_1.pdf

A-     Argumentos  sustentando que o  menor de idade amadurecido tem direito ao sigilo médico em relação aos pais ou ao representante legal:

1.       A liberdade quanto a sua intimidade é reconhecido no menor de idade, inclusive em relação aos pais ou ao representante legal.

2.       O menor de idade tem direito a seus segredos e não infrequente compartilha com alguém de confiança que não os pais ou o representante legal que poderia fazer as vezes.

B-      Argumentos  negando ao menor de idade, embora  amadurecido, o direito ao sigilo médico para os pais ou representantes legais:

1.       O menor de idade é incapaz, precisa ser representado e a comunicação, então se faz necessária.

2.       O direito ao sigilo subentende  haver a independência dos demais, mas o menor de idade  frequentemente é dependente da família.

3.       O representante legal tem a obrigação do cuidado do menor de idade, presumindo-se que a revelação  permitirá  acompanhar e providenciar necessidades para o  bem do menor de idade, inclusive porque este pode ter dificuldades de avaliação da relação benefício-segurança.

4.       O menor de idade costuma ter dificuldades em sustentar necessidades econômicas envolvidas, inclusive os honorários médicos.

maugman
William Somerset Maugham (1874-1965)
niels
Niels Henrik David Bohr 1885-1962)

Recordemos dois contemporâneos entre si: o escritor inglês William Somerset Maugham (1874-1965): “… A mãe só faz mal ao filho quando o trata como a única preocupação de sua vida…”  e o físico dinamarquês Niels Henrik David Bohr (1885-1962): “… O oposto de uma verdade profunda é outra verdade profunda…”.

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Difícil situação. Podemos encarar friamente, pensando nas leis que amparam o adolescente e nos amparam para mantermos o silêncio. Por outro lado, nós também somos pais e amamos nossos filhos. Será que gostaríamos de nos abster de situações das suas vidas às quais pais sensatos certamente teriam uma palavra especial para dar? Acho que o bom senso nessas situações é primordial. Nada está 100% certo ou errado. Depende do momento, do médico, da relação entre pais e filhos. Muitas vezes, tenho a impressão que certos profissionais não estão preparados para lidar e se responsabilizar por certas situações das vidas desses adolescentes. Portanto,que cada um de nós se questione nesse momento para não termos consequências ruins apenas porque nos baseamos a ferro e fogo em um código de ética.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES

fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts
set0 Posts
out0 Posts
nov0 Posts
dez0 Posts
jan0 Posts
fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts

fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts
set0 Posts
out0 Posts
nov0 Posts
dez0 Posts
jan0 Posts
fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts