A utilidade da Bioética enriquece-se na transdisciplinaridade que em ausência do domínio de única disciplina sobre outra manifesta-se pelo diálogo aberto entre ciências, arte, espiritualidade e literatura. Uma ampla caixa de ferramentas em fronteiras sólidas entre possibilidades de cooperação.
Numa intervenção sobre um problema prático da beira do leito, a compreensão e a orientação podem se beneficiar, por exemplo, de uma retroalimentação transcultural que não é literatura de livro de Medicina e traz a estética das letras para o cotidiano da Bioética. Não há dúvida que são textos tecnocientíficos que formam a essência do saber dos médicos, entretanto, não se pode dispensar o valor profissional das mensagens de publicações envolvendo cenários e personagens afins da medicina e das obras focadas na diversidade da condição humana. São fontes de sabedoria aplicável às múltiplas realidades da beira do leito que colocam em contato profissionais da saúde, paciente/familiar, instituição de saúde e sistema de saúde no entorno das ciências da saúde. Assim, é vantajoso enxergar a beira do leito como um cenário de experiência, sensatez e habilidade que sustentam sabedoria, uma qualidade que se nutre de dúvidas e atapeta a Bioética.
Os profissionais que valorizam o aforisma que há doentes, não doenças admitem que a pluralidade de ênfases de uma relação médico-paciente pode ser reconhecida em vários gêneros literários. A literatura é útil para assimilar que as pessoas constituem-se do que aparentam ser, do que de fato são e do que pensam que são. Facilita, pois, a prospecção das entrelinhas da conexão entre profissional e leigo que compõe uma das missões da Bioética.
Livros como Armas, Germens e Aço (1997) escrito por Jared Mason Diamond (nascido em 1937 em Boston) e Sapiens, Uma breve uma história da Humanidade (2014), escrito por Yuval Noah Harari (nascido em 1976 em Jerusalém), conectados pela declaração do israelense que teve forte influência do norte-americano, cuidam da evolução do Homo sapiens. Eles abrem – diria escancaram- a mente para o valor de conhecimentos sobre biologia evolutiva da espécie animal que dá formas (infinitas) à relação médico-paciente e para provocar reflexões sobre a convivência influenciadora da tecnologia, que humana na concepção guarda potencialidades inumanas na aplicação no domínio da medicina. Assim, tais livros proveem ferramentais mentais para a compreensão da evolução da beira do leito na dimensão atual de tempo.
Há não muitas décadas, em relação a hoje, o saber científico na beira do leito era curto e a sabedoria que se esperava sustentava-se no prestígio das humanidades. A tecnologia predominante de então era a natural, maravilhosa se paramos para pensar, contudo uma “edição limitada” para lidar com o desconhecimento na beira do leito. É tecnologia ligada ao uso dos órgãos dos sentidos e que construía raciocínios clínicos com base na inspeção, percussão, palpação e ausculta- também gustação (identificação de glicosúria) e olfato (nos coma hepático e diabético)-, com apoio modesto da tecnologia fabricada- termômetro clínico, estetoscópio, esfigmomanômetro, aparelho de raios x.
A clínica era soberana, uma majestade necessária e aprimorável pela imprescindível pela experiência direta com o paciente devido à carência dos recursos indiretos de exames complementares. O conceito de boa clínica e avaliações éticas sobre prudência, zelo e perícia centravam-se na arte do exame físico e da formulação de hipóteses diagnósticas a ele dependentes.
Numa fase da medicina de escassos capítulos de terapêutica de fato eficaz, anatomia patológica e fisiopatologia desenvolveram-se pelo exame post-mortem dos pacientes permitindo a descoberta das doenças e o aprimoramento dos diagnósticos por meio das correlações com os sintomas e sinais cuidadosamente anotados pre-mortem. Cada dado do exame físico – a palpação de um fígado aumentado, a inspeção de um abaulamento doloroso no flanco, a ausculta de um sopro cardíaco- ganhou uma coleção de doenças achadas nas necropsias- impostas sem consentimento de familiar. Livros continham a totalidade do acervo da medicina num número de folhas que, embora na casa do milhar, não comprometiam serem carregados, cabedal de conhecimento de cada época, em relação a hoje, os chamados tratados eram somente “short data”.
O progresso tecnocientífico acelerou no decorrer do século XX de modo multifatorial, o jurássico bismuto desapareceu, o evoluído antibiótico apareceu e, assim, um cochilo de pouco tempo já motivava o profissional acordar desatualizado. A proficuidade de métodos úteis e eficazes trouxe, contudo, uma colateralidade, a enorme saudade dos tempos mais isentos da indiferença com o sofrimento, da valorização da compaixão, que de certa forma procurava compensar as disponibilidades pouco resolutivas. Em outras palavras, a tecnociência mexeu no foco o alvo da medicina é o ser humano e provocou o surgimento de iniciativas de humanização na beira do leito- na verdade, o resgate do status humano de outrora. Portanto, a “biologia evolucionista” da beira do leito associou mais métodos úteis, mais participação da tecnologia fabricada, menos aplicação da tecnologia natural e menos afetividade. Não sem razão, o InCor nasceu com o lema ciência e humanismo.