Na Babilônia, cerca de um século antes de Hipócrates (460ac-370ac), doentes sentavam-se em praça pública e os transeuntes tinham o dever de se deter no caso e dar algum conselho “terapêutico” baseado na própria experiência. É o alvorecer da anamnese como naturalidade – inteligência natural- emoldurada pela solidariedade.
O amadorismo deu lugar ao profissionalismo. Por mais breve que venha a acontecer, dificilmente um atendimento de atenção às necessidades de saúde carece de uma anamnese, até mesmo em certas situações de emergência.
A configuração de um atendimento de saúde requer a matéria-prima da anamnese, uma atitude associada ao aspecto gregário do ser humano como a história ensina que deve ser estruturada em prol do benefício e do não malefício, passando pelo direito à autonomia. É sabido o quanto a anamnese permite distinguir o mundo clínico do assintomático do mundo clínico do sintomático, muito embora ambos possam compartilhar CIDs.
O valor da anamnese sob a óptica da Bioética alinha-se à condição de porta de entrada da lógica do atendimento, bem como à contribuição na formação da consciência sobre a parte emersa do iceberg fisiopatológico. Ademais, sua onipresença satisfaz a Justiça distributiva.
O princípio da beneficência nutre-se do progresso continuado da medicina e o alinhamento com a anamnese está na utilidade desta de qualificar métodos diagnósticos, terapêuticos e preventivos como preliminar e circunstancialmente úteis e inúteis. A anamnese se faz a uma distância pessoal, comumente, não é tão íntima neste aspecto quanto ao exame físico – que se faz numa distância íntima- mas, admite uma prodigiosa revelação da intimidade do paciente por sua seleção e vontade. Uma questão importante é que fatos apresentados pelo paciente podem estar distorcidos em função de artefatos da memória e da imaginação, e, porque não, de incapacidade em encontrar palavras descritivas. Confesso que apesar de médico experiente em anamneses já tive dificuldades em fazer um relato mais minucioso- e fiel- de algumas manifestações clínicas a meus médicos. Por outro lado, o médico pode não compreender – ou entender errado- certos significados de verbalizações do paciente, ou mesmo linguagens não verbais. Por isso, a beneficência da anamnese deve ser considerada sempre em níveis provisórios, passível de composições entre realidades e ficções. Entretanto, se a anamnese pode ser imperfeita – mesmo feita no capricho- pior sem ela, o que sustenta a sua utilidade. Ademais, a anamnese contribui para uma visão além do presente, certa percepção sobre prognóstico beneficente pode já acontecer tão somente pelo conhecimento do teor da anamnese. É digno de nota que toda a interpretação da evolução do caso considera o teor da anamnese como uma das referências – persistem os sintomas, desapareceram os sintomas, a causa do sintoma foi esclarecida. A beneficência da anamnese é temperada pela humanização.
O princípio da não maleficência, cuja origem hipocrática se bem não faz pelo menos que não faça mal, apoderou-se do progresso da medicina, tornando-a se bem faz poderá também fazer mal. É situação onde a memória sobre adversidades acontecidas passa a ser fundamental no valor da anamnese. Articula-se, pois, com o caráter de alerta da anamnese sobre eventuais evitações, vale dizer para ajustes individualizados sobre o sentido da beneficência conceitual. Em outras palavras, a anamnese alinha-se com o princípio da não maleficência por meio de contenções e de reajustes determinados por influências de adversidades e sustentados pelo componente da cognição chamado de memória.
O princípio da autonomia articula-se à anamnese pela nuance da seleção de palavras segundo a vontade própria. Há pacientes monossilábicos exigentes de um “saca-rolhas” e há os verborrágicos exigentes da moderação. O fundamento da voz ativa em conjugação com liberdade de escolhas faz da anamnese uma verdade não exatamente certeza. A fluência do paciente passa pelo filtro do auto-consentimento, uma censura não é incomum em função de receios pessoais da revelação, por constrangimento, por exemplo. É interessante como a tradição de tudo revelar ao médico do modo mais sincero (como ao sacerdote) – o paciente não cogitava selecionar o que dizer e o que não dizer para não prejudicar a tomada de decisão pelo médico- cedeu lugar ao direito a escolhas de revelações, portanto, menos solidez, mais liquidez. Ademais, a anamnese ganhou componentes de exigências do paciente que muitas vezes provocam objeção de consciência do médico, aspecto ético do profissionalismo contemporâneo de alta relevância, inclusive como etiopatogenia do burnout.