Eis que chega o bonde 72 cheio como de costume. O robô de branco sobe rapidamente e se senta no banco logo atrás do motorneiro como previsto. Coloca no colo a pasta de couro e inicia a viagem de 10 minutos já captando as informações do motorneiro, nome, filiação, idade, CPF, endereço, tempo de trabalho, um efeito colateral da sua programação em um centro de altíssima qualidade técnica, mas desatento sobre certas realidades da vida. Já reclamara deste desvio de função, o motorneiro não era um paciente a sua frente, mas percorridos 50 metros já identificara que ele era diabético e tinha nível alto de colesterol, aliás, sem saber e não se cuidava. Incomodava não poder informar à pessoa, ele era um coletor-caçador de diagnóstico, não tinha nenhuma capacitação para a comunicação verbal. Um dia iria no estribo, precisava de um ato de rebeldia.
Levantou-se e puxou a alça de couro pendurada para o bonde parar no próximo ponto, segurou a pasta de couro com a firmeza pré-calculada e logo estava no hospital batendo o ponto de entrada cumprido com extremo rigor, tinha que ser no 00 dos segundos. Por estranha circunstância, o robô de branco não era alvo da curiosidade das pessoas até o momento em que acionava o ponto de entrada. Nunca lhe explicaram, intuía que era um segredo estratégico. Quando procurara um esclarecimento ouviu simplesmente que não se preocupasse pois a sua programação eliminara qualquer possibilidade de sentir solidão. De vez em quando pensava que o resultado não tenha sido tão perfeito, ficava incomodado entre tanta gente se relacionando, mas tinha que se conformar, até porque no hospital as pessoas o consideravam apenas um objeto.
Já completara 12 meses que o robô de branco recolhia dados dos pacientes para alimentar um big data, visto pelos médicos ora como um rival da classe, ora como uma ferramenta multiuso. Foi quando percebeu que o sumiço temporário de funcionários era férias, ao mesmo tempo que descobriu que ele não tinha este direito trabalhista. De repente, ficou em dúvida se estaria sujeito ao burnout, nada constava no seu manual de uso. Sua programação era workholic tipo I – apenas coletor-caçador de dados- e tinha a intenção de merecer um upgrade para o tipo II- interpretação dos dados recolhidos- e, porque não, para o tipo III- capacitação para um rapidíssimo matching. Frustou-se quando descobriu que as novas gerações de robôs já combinavam mais de um tipo. Ficou com a sensação que já nascera velho, se autointitulara um portador de progeria. Ouviu boatos que seria transferido para um hospital de menor porte assim que uma leva de robôs mais modernos chegasse – a licitação estava em andamento. Arrepiou-se ao se imaginar sucata.
O robô de branco, na verdade, tinha sido um projeto único denominado Vintage. Assim que assumia o seu posto de trabalho, ele abria cuidadosamente a pasta de couro e se equipava com o estetoscópio, o esfigmomanômetro e o termômetro. Porque gostava de tocar o paciente, os invejosos diziam que ele tinha TOC. O robô de branco representava a ideia de um grupo de cientistas autointitulados saudosistas oslerianos que novidades e tradição ampliam a qualidade da atenção às necessidades de saúde. Entretanto, o robô de branco era o patinho feio em meio a tantos cisnes. Um doutor estava desenvolvendo uma pesquisa comparando a qualidade da sua captação híbrida com a de outro robô não equipado com instrumentos do “século passado”. Era a sua esperança de permanecer no hospital apesar da chegada das novas gerações. Modéstia à parte, conseguia manejar os instrumentos com habilidade e era raro caso em que o uso não provocava algum ajuste na captação dos dados desde o paciente.
Quando voltava para casa algo na antiguidade do bonde fazia com que o robô de branco se desse conta que desenvolvia pensamentos como os humanos. Tinha tentações, contextualizava os dados, interessava-se pelos pacientes, analisava comportamentos de familiares, intrigava-se com angústias dos médicos. Até a bela paisagem à beira-mar do trajeto lhe tocava. Ele estava tendo uma desrobotização ambiente-sensível. No início, atribuiu a falhas no projeto, mas, logo cresceu a ideia que ele poderia conter uns adendos intencionais dos seus idealizadores saudosistas oslerianos. O robô de branco vibrou com a perspectiva de uma programação em inteligência natural!